LIÇÃO POR MEIO DA MORTE
A sua única perna começou a ficar com uma cor que lembrava a roxa, mas ao mesmo tempo era avermelhada, era como se o sangue de todo o seu corpo tivesse voluntariamente descido em direção a ela.
Corremos em direção ao telefone, na tentativa de conseguirmos uma ambulância do SAMU, mas todas as investidas foram vãs. Saí correndo até o Corpo de Bombeiros que ficava a uns quinhentos metros, ou um pouco mais, de distância de casa, também na esperança de conseguir uma ambulância, usei todos os meus recursos de persuasão e convencimento, tudo em vão. Voltei para casa, cansado e revoltado com a insensibilidade do ser humano diante do desespero de outro ser humano, neste caso o meu desespero e de minha irmã.
Chamamos um táxi, e com muita dificuldade conseguimos colocar o meu pai dentro. Ele estava muito debilitado e por ser um homem muito grande, dificultou bastante o nosso trabalho, para conduzi-lo e aconchegá-lo dentro do carro.
Vivíamos, à época, uma situação financeira não muito boa. Meu pai, nunca se preocupara em ter um plano de saúde, nem mesmo uma funerária. Na realidade, meu pai nunca fora um homem de investimentos, digo isso não me só referindo às questões financeiras, refiro-me a valores nobres, como família, filiação, casamento, religiosidade, caráter ilibado, respeito... fora sempre um homem dado à bebida, homem de muitas mulheres...
Finalmente chegamos à clínica. Descemos do táxi, com a mesma dificuldade que o colocamos. Aguardamos a chamada feita pelos auxiliares da clínica. Entramos na sala do médico. Ele olhou para o rosto de meu pai. Em seguida desceu olhar para as pernas do paciente. E de maneira contundente, disse: “ele precisa ser internado imediatamente, pois a sua perna está gangrenada; precisa ser amputada imediatamente. Vou encaminhá-lo a um hospital para ser feita a cirurgia.” Tudo isso foi dito, olhando nos nossos olhos. Em momento algum dirigiu a fala ao meu pai.
“... mas doutor, dissemos, como ele irá ficar sem as duas pernas?!!! Não tem outro jeito?!!! Não faz muitos anos que ele amputou a outra perna, doutor!!” Houve naquele momento um rápido silêncio! Mas que fora um silêncio sepulcral atormentador. O médico olhou-nos nos olhos como se quisesse entrar em nossas almas e disse: não, não há outro jeito. O que vocês preferem perder o pai de vocês por completo ou somente uma parte da perna dele? Imediatamente, aquele silêncio, que nos havia deixado alienado do mundo, foi quebrado e retornamos a si. Respondemos ao médico que, então, fizesse o encaminhamento para a cirurgia.
Fiquei com o meu pai no hospital, à espera da cirurgia, por aproximadamente uns três dias. É claro que eu revezava com a minha irmã. Nessa hora, ele não teve amigos, nem mesmo as mulheres, que ele teve, tiveram ao menos a consideração de ir visitá-lo. Só restava eu e minha irmã. Os outros filhos também não apareceram.
Chegou a hora da cirurgia. Lá se vai ele em uma maca, sendo deslizada sobre a cerâmica gélida, que revestia o chão daquele hórrido hospital, e escura, devido às inúmeras pisadas de pessoas, que como eu e minha irmã, transitavam carregando os seus pesados fardos, dores e lamentos. O corredor parecia não ter fim. Ali estava aquele homem, que, talvez, pelo o infortúnio do destino, era o meu pai biológico. Ali estava um homem de quem um dia eu sonhara receber carinhos e beijos, mas que nunca se realizou. Agora ele seguia um caminho contra a sua vontade, não tinha mais força para lutar e descer daquela maca, que o conduzia a uma sala, de onde ninguém sabia qual seria o resultado. Quisera eu poder ler os seus pensamentos, para saber se ao menos naqueles instantes, naqueles últimos instantes ele se arrependera de suas faltas como pai, como esposo, como homem, como um filho de Deus.
Passaram-se algumas horas. Para mim pareceu uma eternidade, em meio ao silêncio. O silêncio tem o poder de nos fazer conversar com a nossa alma, com o nosso espírito, tem o poder de nos fazer entrar em profunda introspecção. Ali, no corredor, viajei para outro mundo, para outro tempo. Revi pessoas que há muito não os via. Passei por ruas e casas que há muito ficaram para trás. Viajei até a minha infância, até a minha adolescência...
Quando acordei dos meus devaneios a cirurgia já havia acabado. Minha cabeça estava em erupção. Disseram a mim e a minha irmã que a perna de nosso pai havia sido amputada e que, portanto, deveríamos levá-la para ser enterrada em algum cemitério, pois o hospital não se responsabilizava por tal serviço. Ficamos atônitos, com tal imperativo. “Como assim enterrar a perna?”, perguntamos. “Ora como assim!!”, retrucaram. “Vocês deverão ir a um cemitério e pagar para que eles cavem uma pequena sepultura e enterrem a perna nela”, reafirmaram.
Meio atordoados ainda pelo choque, recebemos aquela porção do corpo, que fora de meu pai, dentro de uma caixa de papelão reutilizada e seguimos para o cemitério mais perto. Pagamos pelo serviço. Eles fizeram o serviço.
Já no hospital, depois de algumas horas, recebi a notícia que meu pai havia morrido. Liguei para a minha irmã e dei-lhe a notícia fúnebre. Meu Deus! Oh! Deus, meu! Como foi difícil para eu noticiar-lhe tal fato. Meu coração estava dilacerado. Não somente pelo fato de ele ter morrido, mas porque a minha consciência comprimia-me, era como se algo quisesse tirar o meu direito de governar as minhas atitudes. Novamente viajei para outro mundo. Um mundo de queixas e lamentos. De queixas, pois nunca tivera um pai presente, um pai amigo, um pai confidente, um pai, simples assim; de lamentos, pois deveria eu ter tido mais amor por ele, deveria eu ter procurado mais por ele, deveria eu ter tido mais paciência com ele. O “deveria” ecoava em minha mente, como um instrumento de percussão.
O levamos, ou melhor, levamos apenas uma parte do seu corpo, para ser velado na igreja. Não apareceu ninguém ao seu velório, exceto a minha família e a da minha irmã, e alguns amigos nossos. Meus outros irmãos não apareceram. As várias mulheres dele também não apareceram. Seus amigos?!! Não houve nenhum, nenhunzinho sequer apareceu.
No dia seguinte, fomos enterrá-lo. Primeira vez, e espero que tenha sido a última, em que vejo alguém ser enterrado por partes, primeiro a perna, em um dia; depois o restante do corpo, em outro. Até hoje, quando me recordo dessas cenas, penso qual lição ela quis dar a mim. Como pode uma pessoa ser enterrada em dias diferentes e em covas distintas?
Naquele dia pude entender com letras garrafais que a vida é muito mais do que prazeres e deleites, que devemos ser investidores, o melhor investidor, em coisas nobres, em coisas que nos darão paz na velhice, que se os filhos não nos forem amigos ninguém o será, provavelmente. Também entendi, naquele dia, definitivamente, que a única coisa boa que podemos deixar para os filhos, esposa, amigos, colegas, parentes são as boas recordações, as boas lembranças, as boas palavras, as boas dádivas, pois essas coisas o tempo não as pode apagar. Essas coisas, como diz as Sagradas Escrituras, as traças não as podem corroer e nem mesmo os ladrões escavar e as roubar.