Identidade Negra em tempos brutais do preconceito

Torna-se difícil falar de identidade racial, diante de um emaranhado de práticas discriminatórias. O racismo no Brasil é uma realidade que se camuflou desde sempre, mas na prática, no falar, nas oportunidades, no acesso aos serviços públicos e as Universidades, no mercado de trabalho e mídia o que se imperou foi à hegemonia superiora de uma raça (branca) em detrimento de outra (negra). Sinais do oprimir de uma minoria europeia que confunde, até hoje, a busca por uma identidade racial.

No cotidiano, o negro vai enfrentar o seu inverso, forjado e imposto. Ele não permanecerá indiferente. Por pressão psicológica, acaba reconhecendo-se num arremedo detestado, porém convertido em sinal familiar. A acusação perturba-o, tanto mais porque admira e teme seu poderoso acusador (MUNANGA, 1988, p. 26).

Por essa razão, os negros no Brasil são os mais paupérrimos. Essa situação de escória é denunciada pela Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT): “Em suma, cada negro vive sua própria identidade de analfabetismo, fome, miséria e segregacionismo” (1986 p. 15).

Para o povo negro foi destinado o mundo dos de baixo. Os negros são maiorias nas prisões, nas filas dos hospitais, nas favelas e guetos, nas sinaleiras, nas sarjetas da vida; os jovens negros são os que mais morrem por balas perdidas e são vencidos pela criminalidade. Os negros, numa estrutura de sociedade piramidal, ocupam quase que maciçamente a base, sustentando a classe média e os ricos.

Para os de cima, a luta principal para a qual eles gastam tempo, dinheiro e energias, será sempre no sentido de melhorarem cada vez mais a fachada que apresentam; para os de baixo, a grande luta é aquela de parar e juntar companheiros e discutir com eles os próprios problemas, até fazer a própria voz chegar a incomodar o pessoal de cima: só na hora em que conseguirmos incomodar é que conseguiremos espaços nos jornais, na TV; e a sociedade, de uma forma geral, se dará conta de que nós existimos, e somos uma multidão (Cartilha dos grupos de base dos agentes de pastoral negros, 1987, p. 29).

E para agravar a situação, os negros, quando chegam e permanecem nos bancos escolares, aprendem uma história brasileira forjada, onde os heróis, ou melhor, os falsos heróis são os brancos. Ficando a dúvida: 13 de maio ou 1º de abril?

Não contam das lutas de homens e mulheres pela causa negra e nem registra a colaboração na produção das riquezas do Brasil, e ainda na preservação do que de mais bonito e sagrado existia na África.

A história oficial não registra esses fatos gloriosos, [...] Em consequência dessa ocultação da verdade, a juventude da América desconhece os seus poderes potenciais e a sociedade negra lamenta uma história frustrante e sem epopéia (ASETT, 1986 p. 17).

A historicidade não relata os fatos jubilosos, “pois isso significa incorporar o negro na história nacional” (ASETT, 1986 p. 17). Como, por exemplo, uma criança negra vai se enxergar nesse quadro? Ela se perceberá no escravo marcado e espancado da senzala ou como o branco poderoso, rico e nobre?

Os livros escolares apresentam, em geral, situações que não correspondem à experiência de vida das crianças negras. As ilustrações sobre a casa, o bairro, o alimento, o vestuário, a cor das pessoas, marginalizam a criança negra e não refletem o seu mundo. Levam-na também a introjetar, por vezes, o mundo do branco, desprezando o seu próprio mundo (ASETT, 1986 p. 38).

O sistema educacional brasileiro determinava a aplicação de um currículo único, sob o pretexto de oferecer uma educação “igual” pra todos. A escola não se preocupava se em suas cadeiras sentavam descendentes de iorubás, ou de japoneses, se os alunos viviam em uma comunidade rural ou em grandes centros urbanos. Com isso, as características singulares de cada grupo ficaram excluídas – ou escondidas – durante décadas. O resultado disso é uma autorrecusa do negro por sua etnia e ancestralidade.

Na sua totalidade, a elite negra alimentava um sonho: assemelhar-se tanto quanto possível ao branco, [...]. Como tornar real essa semelhança a não ser através da troca de pele? Ora, para nisso chegarem, pressupunha-se a admiração da cor do outro, o amor ao branco, a aceitação da colonização e a auto-recusa. E os dois componentes dessa tentativa de libertação estão estreitamente ligados: subjacente ao amor pelo colonizador, há um complexo de sentimentos que vão da vergonha ao ódio de si mesmo. (MUNANGA, 1988, p. 27).

A revista Nova Escola, ano XIV, número 120 de março do ano de 1999, estampa em sua capa a figura de um jovem negro amordaçado, com o seguinte letreiro: “ELE VAI COMEÇAR A GRITAR!”. A reportagem de capa (página 10), traz o trabalho de pesquisa sobre discriminação da pedagoga Eliane Cavalleiro, que entrevistou professores, funcionários, alunos e seus familiares. Os depoimentos recolhidos foram registrados em sua tese, apresentada na Faculdade de Educação de São Paulo. As declarações constrangem quem as lê pela crueza com que se expõem a existência do preconceito na escola, vejamos algumas das frases documentadas pela professora Eliane Cavalleiro.

“Por que vocês acham que os negros têm essa cor?”, pergunta uma professora à classe. Uma criança branca responde: “Porque são feitos de porcaria!”. A professora tenta contornar a situação: “O negro tem essa cor porque é originário da África, onde o sol é muito quente” (NOVA ESCOLA, março de 1999, p. 11).

Afirmações como essas demonstram que o brasileiro ainda não está de braços abertos para acolher a diversidade racial que constitui a nossa identidade. O mito da democracia racial entravou por muito tempo debates concernentes a discriminação e a desvalorização da raça negra, atravancando avanços rumo a valorização das diferenças. Para restabelecermos a saúde dessas discussões muitos setores das sociedades, como igrejas, escolas, associações, sindicatos, universidades e outros, são conclamados a contemplarem espaços saudáveis a diversidade. Afinal, pessoas precisam ser educadas para conviver com a diferença alheia. Ainda, pedindo apoio a pesquisa da Pedagoga Eliane Cavalleiro observamos a seguinte ruptura:

Eliane entrevistou uma menina negra e pediu que ela se descrevesse: “Eu tenho uma franjinha abaixada, sou gordinha, meu pezinho é gordo porque eu puxei meu pai”. Eliane fez outra pergunta: “Como você é: preta, branca...?”. Depressa a garota disse: “Morena.” A pedagoga: “Você gostaria de ser diferente?” A menina pensou um pouco antes de responder: “Hum... eu gostaria de ser branquinha!” (NOVA ESCOLA, março de 1999, p. 13).

O que a professora Eliane expôs neste diálogo, é o retrato pintado pela ideologia do branqueamento. Diante do exposto, tomamos conhecimento de que os negros, ao longo da história do Brasil, têm sido, juntamente com os índios, os mais discriminados. Logo, a ideologia ou maneira de pensar sopra o hálito do racismo, ditando a regra de que o que é bom e bonito é branco e tudo o que não presta é negro. Com isso, “o branqueamento do negro realizar-se-á principalmente pela assimilação dos valores culturais do branco.” (Munanga, 1988). É o que sinaliza a confidência de uma garotinha à professora Eliane.

Uma das meninas negras contou à pedagoga uma conversa com sua professora: “Eu disse para ela que eu não queria ser preta, eu queria ser como a Angélica (apresentadora loura da TV Globo). Ela é bonita!” Desde esse dia, para desgosto da menina, a professa passou a chamá-la, jocosamente, de Angélica (NOVA ESCOLA, março de 1999, p. 15).

Antes que nos sintamos tentados a julgar essa criança, recordemo-nos de que o pano de fundo desse desabafo é o peso de carregar uma dupla condição: ser oprimida e discriminada. Afinal, só quem é negro sabe o que é ser negro no Brasil. Evidentemente, não se pode negar que é um exemplo gritante de uma negação racial, fruto do racismo, que é filho do colonialismo e que já assassinou e fez muitas vitimas, criando em tantos negros o pavor de sua cor e um esforço gigantesco no sentido de disfarçar as suas origens.

As negras desesperam-se, alisando os cabelos e torturando a pele com produtos químicos, a fim de clareá-la um pouco. Escondem-se o passado, as tradições, as raízes. [...] em vestir-se como o colonizador, em falar a sua língua e em comportar-se como ele, o colonizador opõe a zombaria. Declara e explica ao negro que esses esforços são vãos, que com isso o negro ganha apenas um traço suplementar: o ridículo (MUNANGA, 1988, p. 30).

A superação desse estigma virá pelo prazer de ser negro, de carregar em seus traços, no crespo dos cabelos, no nariz achatado, nos lábios grossos e na cor firme um pedacinho de sua história, que gira e roda no fuso da Terra em direção às várias memórias. Reservaram para nós o pior lugar como comprovação de uma “incapacidade” (aspas minhas), mostraremos a existência de um equívoco, pois ser negro é orgulho, é seguir em frente sabendo que legiões marcaram nossas vidas, ancestralidade, passado, enfim, nossa identidade.

Referências

ASSOCIAÇÃO ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS DO TERCEIRO MUNDO (ASETT). Identidade negra e religião. Rio de Janeiro: CEDI, 1986.

CELAM, Conselho Episcopal Latino-Americano. Os grupos afro-americanos: análise e pastoral / [traduziu do castelhano Álvaro Cunha]. – São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

MUNANGA, Kabengele. Negritude – usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988.

Revista Nova Escola – ANO XIV – Nº 120 – MARÇO DE 1999.

Toni DeSouza
Enviado por Toni DeSouza em 12/03/2014
Código do texto: T4725166
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