A Porta
Noite alta. Escutei a porta se abrir com violência. O vento entrou em lufadas vigorosas. Era como um chicote que, nas mãos do tempo, açoitava minhas lembranças. Gritei. E meus gritos vinham à garganta com gosto de sangue e de solidão.
Em sonho, tu me perseguias usando ridículos disfarces. Tinha outros rostos, outras mãos e até outras idades, mas os mesmos olhos. Depois do imenso corredor, ia se despindo, aos poucos, sem perder o contato visual comigo. Nessa atmosfera melancólica, teus olhos eram apático convite, indiferentes a minha dor.
Em poucos segundos, tu te desfazias nessa visão, abandonando-me por completo. Eu me via, então, irremediavelmente perdida naqueles quartos de aluguel, onde o cheiro de todos se misturava ao teu. Onde eu não podia, mais uma vez, enxergar teu rosto com a clareza de outros dias. (Não é raro que, depois dessas ilusões, eu acorde com a boca seca e os olhos molhados por lágrimas aflitas, o coração batendo desenfreando e aquela sensação de nitidez que mistura sonho e realidade).
Esse giro das ideias permanece ainda por alguns minutos. Com o peito ainda palpitante, insisto em retornar, quero encontrar teu olhar do outro lado, quero tocar-te, fazer-te real (como nunca fora)... (Mas a porta já inverteu a batida, acordando os sentidos, desfazendo a fantasia).
Os ruídos da noite, lentamente, começam a atravessar as janelas do quarto. Os notívagos habitantes da rua quebram garrafas e vomitam (também) suas solidões no asfalto. Ouço a náusea de velozes motores, escape para outras sinas que a madrugada carrega. É quase música essa abstração noturna.
Divago na vaga consciente de minhas certezas. Os olhos fitos na porta mergulham em profunda escuridão.