FAROFA DE VACAS GORDAS COM PEDRAS DURAS
Eu estava ali, num banquinho da praia, bem embaixo duma folha de coqueiro, a observar o belo dia que apontava no horizonte.
Era um domingo de festa e o movimento dali nitidamente já dava sinais de que seria um dia bem atípico nas areias do lindo e famoso balneário.
Bem cedo já se amontoavam os sorveteiros, os vários empresários de barraquinhas fixas e ambulantes, os camelôs que vendem "de um tudo" pela areia, enfim, aquela agitação mercantilista que praia alguma está imune nos nossos atuais dias de vacas gordas.
De fato, ao ligar os meus botões da observação, constatei que o progresso social anunciado aos quatro ventos, no que tange aos nossos bens de consumo, deveras nos foi algo soerguido, e ninguém em sã consciência duvidaria da festa.E que festa!
Em meio ao barulho das ondas que quebravam no arrecifes, muitos automóveis novinhos em folha se empilhavam em diagonal, na calçada da praia em contiguidade com a areia, onde muitas famílias neles montavam seu ponto de apoio ténico para o dia, qual uma casa móvel, ou um quartel general, onde seus soldados bateriam ponto frente às ordens demandadas de lá por alguém que assumisse o comando da areia.
Foquei a atenção em especial para um gol preto tinindo de novo, zerinho em folha, que estava bem ali próximo a mim.
Dele, sairam umas doze pessoas ávidas pelo sol que já subia a dourar as ondas da areia.
As crianças, em número de seis e em idades cronologicamente ascendentes, saltaram apressadas e irradiantes para o mar ainda de água gelada, porém, imediatamente retornaram sob o comando da avó:
-Vorta aqui já pra passar o "fiú solar", muléques endiabrados!-gritava ela pela areia, a segurar o lenço estampado que trazia na cabeça simultaneamente ao avental que voava sobre o seu abdômen.
Mais alguns instantes e uma fumacinha trazida pela brisa me aguçou o olfato pelos ares sob um perfume de café recém passado.
Então , dei alguns passos como quem não quer nada e observei uma cozinha montada no porta malas do carro zerinho. Um primor.
Tudo limpinho! Utensílios também brilhando em folha!
Confesso que senti vontade de experimentar o coado.
Fui fazer a caminhada do dia.
Quando voltei, fluiam o dia e a lida daquela senhora avó caiçara que comandava onze pessoas da família: filhos, noras, genros, e netos.
Mais ou menos meio dia...e o almoço saiu nos conformes.
Arroz branco, feijão, farofa de milho, frango grelhado, todos servidos em porções acompanhados da marca pet hegemônica, menu retirado de recepientes devidamente refrigerados.
-Vó quero mais, voltava o menorzinho da turma com a boca cheia.
-Carma, fio!-dizia a vó com toda a autoridade do mundo,- ocê não pode enxer muito o bucho não, se não dá congestão nos miolos lá na água!
Achei porvidencial a preocupação diagnóstica.
Mar com comida nunca foi uma combinação muito harmoniosa mesmo, e ali era mais que evidente o desaconselhamento da tal combinação...
Enquanto eu pensava fui distraída do meu pensamento:
-Ó vó, me tô com dor de barriga, será que é nó nas tripas?
-Nada, muleque esvazia as tripas aí mesmoo que ocê sara logo!
E o moleque não teve dúvidas, seguiu direitinho o conselho da avó ali mesmo...
Final do dia e todos se recolheram para o carro novinho, templo abençoado daquela próspera família,todavia,automóvel algo sofrido pela labuta do seu destino desviado do ofício.
Via-se comida para todos os lados na areia...e no interior carro.
De volta para casa as crianças levaram belas lembranças da praia, afinal, um dia como aquele haveria de ter lembranças mais concretas.
-Óia vó, que legal, é pra gente brincar no quintal lá de casa ...disse o menorzinho radiante de felicidade. Logo chegou mais um sem espaço nas mãos para carregar o presente da praia.
-Pega mais umas lá pra mode a vó enfeitar a casa e as "pranta" fio...
E assim constatei que várias pedras dos arrecifes, aquelas que normalmente se desgarram das barreiras pela areia da praia, foram retiradas do seu ecossistema para alegrar e enfeitar a vida, não menos dura, daqueles que hoje acreditam que ganharam a dignidade.
Ali, em meio ao vai- e- vem das ondas da praia, tive uma aula de sociologia dos tempos atuais.
Nota: verídico.