APOSENTAR, PARA QUÊ?
APOSENTAR, PARA QUÊ?
Terezinha Alves Macedo[1]
Aposentadoria pra lá, aposentadoria pra cá. Depois de alguns anos na “luta”, como dizem muitos professores e outros profissionais também, é com freqüência que se ouve troca de idéias, pareceres, impressões entre eles, sobre o tema. Ah, o sonho de todos... a chegada da aposentadoria. Mas, quando este dia chega, ele traz consigo um monte de rugas, pés de galinha e dores nas articulações. Oses e ites por todo lado. Aliás, essas coisas indesejáveis, de tão intrometidas, ousadas, assanhadas, inconvenientes vêm na frente, a galope.
Dizia uma amiga para outra: Você já parou para pensar na origem semântica da palavra aposentar? Eu não consegui encontrar em nenhum lugar, mas penso que vem da palavra aposento e aposento pode ser compreendido como quarto.
Se estou na trilha certa, isso significa que aposentar é o mesmo que “ir para o quarto”. Traduzindo melhor: esconder-se, esquecer da vida lá fora, sob o sol maravilhoso do campo ou da praia; deixar de caminhar nas calçadas das ruas da própria cidade ou de outra, apreciando as flores, as árvores que surgem pelo caminho e ouvindo o canto alegre dos passarinhos de galho em galho; não mais se lembrar de reservar um tempo para tirar meias e sapatos e pisar no chão de terra vermelha, fofo ou duro ou nas areias claras, finas, frias ou mornas, apenas pelo prazer de voltar à infância perdida; ou de tirar sapatos e colocar meias para pisar na grama sem machucá-las ou em outras sensíveis gramíneas ou mesmo para apenas retirar as folhinhas secas, murchas, feiinhas. Em outras palavras: brincar despreocupadamente com as coisas da natureza, sem compromisso com a hora.
Voltando à nossa reflexão inicial, relembramos das observações que fazemos dos acontecimentos do cotidiano: uma febre tomou conta de quarentonas e cinquentonas, em final de carreira, loucas para aposentar, depois de uma vida inteira dedicada ao magistério. Aposentar, sim. Não para ir para “os aposentos”, mas para ir à Europa, principalmente. Ou para usufruir de outros prazeres que seu pouco dinheiro de professor aposentado poderá lhe proporcionar. Outros preferem ir para Gramado, Canela, atraídos pelo clima, pela influência européia e pela cultura da região. Ir para Bonito, Chapada dos Guimarães? Ah, não... isso é coisa para jovens, que ainda toleram certos “desconfortos”: trilha, percurso de bote, pernilongo, sol escaldante, vento, poeira, aventura, enfim. Palavras dos menos ousados.
Aposentadoria. Ah, esse grande evento... vai acontecer um dia. Espera-se. Alguns desenvolveram um hábito: vasculhar, fazer varredura do Diário Oficial atrás de notícias. Não se trata de uma busca de notícias sobre ele próprio, não. Procuram notícias sobre amigos de infância, contemporâneos ou de colegas de trabalho. Uns chegam a ter uma pontinha de inveja, outros se deliciam quando vêem o nome de um amigo querido. É como se eles acreditassem que realmente é possível o tal do dia chegar. Demora, mas chega. Ver o nome do amigo lhes traz uma esperança: os deles também vão aparecer um dia, ali. Eles só esperam que não seja tarde demais. Isso já aconteceu com muita gente. Contaram-me um dia e fui folhear o diário pra ter certeza e tive. A aposentadoria da coitada saiu seis meses depois (ou foram dez, não me lembro bem) que ela já tinha embarcado para a longa e última viagem. Quase morri de pena ... e medo. Vai que acontece comigo, também.
Não se fala noutra coisa. Uma professora, meio desanimada, dizia: “ainda tenho oito anos pela frente; isso me acontece porque comecei a trabalhar muito tarde”. A outra rebate: “e eu que comecei muito cedo, por isso tenho tempo de sobra, mas não tenho idade...". “Pior acontece comigo, dizia outra arrependida, comecei cedo, mas não fui registrada, não tive carteira assinada”.
A solução é continuar trabalhando, indo meio de arrasto. Concluía uma professora que tinha mania de perseguição e, que segundo seus amigos mais íntimos, tinha a tal de macrovisão da realidade: "Acho que 'eles' querem que a gente chegue para trabalhar na escola, usando bengala. Cabelo branco a gente pinta, dá para esconder o número de primaveras vividas. Mas, perna manca, não dá". Alguém esbravejou, quase riu de si própria, quando se deu conta da verdade: "Que primavera! Que nada! Isso foi há muito tempo. Já estou no outono da vida, concordava uma professora solitária, ranzinza e amargurada. Folhas caindo, caindo... Agora, bengala... não dá para esconder... Outra dizia: "melhor bengala do que andador". "Ah, não quero ser tão pessimista", filosofava uma colega em uma reunião, querendo aparentar otimismo e dar um pouco de ânimo para a outra: “A gente tem que lembrar que três anos passam bem depressa”. A outra inconsolável, resmunga: "Ah, mas até lá eu posso ter passado também". E do jeito que as coisas andam, quando eu me aposentar, vou, sim, é para “os meus aposentos” e depois disso só me resta dizer: adeus Europa, adeus Museu de Freud em Londres, adeus Louvre, adeus espetáculo de sapateado flamenco em Madri ou Barcelona. Que me perdoe o Leonardo da Vinci. Ah, a Mona Lisa também. Irão ficar sem o meu olhar de contemplação, direto e vivo.
Capela Sistina? Nem pensar! Como olhar para cima? Se me deitar no chão, vai dar tontura. Se ficar de pé, o pescoço não vai aguentar sustentar a cabeça... Sem solução! Perdoe-me o Michelangelo, também.
Como andar a pé pelas ruas de Viena, para ver a casa onde Freud clinicava e morava? Só se for usando macias e confortáveis pantufas, para não sentir nem mesmo uma leve dorzinha nas articulações dos membros inferiores.
Como caminhar pelas ruas de Paris, na época de colher cogumelos fresquinhos? Pelo menos se fosse na época das liteiras... ou das carruagens que iam devagar, quase parando se assim o cidadão quisesse. Hoje, a gente caminha devagar ou com os próprios pés, uma curta distância, ou vai de carro a 80 km/h e nada vê, nada aprecia ... Ainda com uma agravante: se os vidros da janela estão recolhidos, o vento desmancha a rala cabeleira ou estica a pele já com pouca elasticidade.
Outra parece que já desistiu da viagem. Parecia revoltada, quando expelia umas palavras: “Isso não é nada, comparado à travessia do Atlântico na classe econômica. Horas e horas ... quem aguenta ?!”
Do jeito que as coisas andam, daqui a pouco, um pessoal bem-intencionado em salvar o sistema previdenciário ou em esconder algumas evidências de desvio de dinheiro público, vai dar o golpe no sonho de muita gente que trabalhou duramente para sustentar um pequeno grupo (inclusive o pessoal bem-intencionado) e em vez de gastar seu pobre dinheirinho com seu velho sonho, herdado do eurocentrismo, vai gastar com medicamentos, fisioterapia, terapia ocupacional, recolhido em seus aposentos. “Aquele, coitado, aposentou mesmo”, dirão os mais observadores.
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[1] Psicóloga, Pedagoga, Especialista em Educação do Quadro do Magistério de Mato Grosso do Sul, Mestre em Educação pela UFMS.