O carnaval e o espaço público
É indubitável que o carnaval é uma espécie de tomada do espaço público. Neste tempo, em todo o país, de alguma forma as pessoas se mobilizam, arregaçam as mangas, arrumam as fantasias, se pintam e saem às ruas. É a maior festa “popular” no Brasil de desiguais e de gente que não se encontra no dia a dia. Contudo, alguns fatos merecem reflexão.
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O carnaval se modifica como tudo na vida. Outrora era digno de ser uma festa na qual as pessoas se misturavam em diferentes “classes”, sexo, posição religiosa e tudo mais. No Brasil então, a grande festa é uma mistura danada, resultado das festas portuguesas, dos rituais indígenas e da religiosidade alegre dos negros. Tudo muito fantástico, mas mentiroso.
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Já faz um tempo que o carnaval tornou-se um espaço onde as diferenças de classe, a arrogância em relação à diferença e o culto à meritocracia tornaram-se norma. As escolas de samba, que ganharam com a TV e com recursos públicos, especialmente em São Paulo e Rio de janeiro viraram grandes espetáculos, proporcionados por verdadeiras instituições. Sem dúvida, tudo muito bonito. Mas vamos à verdade, o pobre sequer pode ter acesso às melhores fantasias e aos locais nobres das alegorias. O pobre fica ao longe, não somente para olhar e participar de alguma forma, mas fica de longe dos camarotes, das cadeiras caras e superfaturadas e até das arquibancadas que estão os olhos da cara. Tudo muito triste.
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Chamar isso de tomada de espaço público consciente chega a ser ingênuo. Há tempos o carnaval em Salvador é pra quem pode pagar pelo uniforme e pela possibilidade de lamber os restos das "celebridades". O pessoal longe das cordas cheias de segurança e da polícia descendo o pau é chamado carinhosamente de piruá que vira pipoca. Ou seja, é o pobre pulando da angústia e tentando virar pipoca para participar de uma panela que para ele não tem lugar. Tudo muito desigual, melancólico e desumano.
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Resta ao pobre, pelo menos em tese, tal como os “entrudos”, ranchos e cordões do passado a cultura dos blocos. Assim a coisa fica mais fácil, pois existem blocos para ricos e blocos para pobres. Só não vê quem não quer ou está fantasiado. Os movimentos da festa no passado não podem ser comparados aos de hoje. Nos dias hodiernos, blocos pedem passagem ao poder público (em Belo Horizonte, mais de 140 blocos pediram passagem para desfilar pelas ruas sujas da cidade). Pobres, especialmente negros e “suspeitos, são parados, revistados e quase perdem a virgindade ante a truculência governamental. E dá-lhe um carnaval que desfila como uma escola de samba. Blocos, por definição, são micro festas que se desenvolvem aqui e ali somente para a pura e necessária diversão. Também pela pura e obrigatória possibilidade de suspender tantas convenções, etiquetas e acontecimentos que ofenderam profundamente a condição de humano. Tudo contribui para o retorno de tais práticas, especialmente em cidades do interior onde as desigualdades já são escondidas desde sempre.
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A discussão é mais complexa é comporta muito mais linhas, mas quem curte carnaval não pode se achar santo, tampouco consciente e ousado ao tomar as ruas como espaço público de direito e igualdade. Infelizmente, não! O carnaval, a festa da carne, principalmente em tempos bicudos, ainda é para poucos, é para os que têm, os que gozam da segurança fornecida pelo Estado e para os que podem se adequar sem grandes transtornos às multidões que andam por aí em busca de saúde, educação e segurança existencial. Para o pobre que conseguiu participar, e que vive preso na senzala da vida, parabéns pela labuta e pelas relações sociais que conseguiu estabelecer. Mas seria bom que voltasse para a realidade sabendo que ela é de miséria diária, onde a pipoca não tem vez, a realidade de arquibancada com chuva e empurrão é humilhante, o mesmo podendo-se dizer do ônibus lotado (quando existe) e da tristeza de se sentir participante de uma festa que “de todos” não existe.