Sons, barulhos e ruídos

SONS, BARULHOS E RUÍDOS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 19.02.14)

Há uns trinta anos, ou pouco menos, alguém publicou uma estatística interessante. Tão interessante que deveria ter sido repetida à exaustão ou, mesmo, contestada de forma acachapante caso seus números estivessem incorretos. Talvez não haja acontecido nem uma coisa nem outra, talvez ninguém tenha lido o resultado da pesquisa, talvez a frase nem tenha sido dita, talvez a ideia fosse um bocado boba. Mas dizia mais ou menos o seguinte: "uma criança de seis anos de idade nos dias de hoje já terá escutado mais música do que Beethoven conseguiu ouvir em seus 56 anos de vida" (apesar da surdez que o acometeu aos 46 anos mas se iniciara aos 26).

Àquela época - década de 80 do século passado -, o telefone celular não existia na prática, televisores e aparelhos de som custavam muito dinheiro, os computadores pessoais, caríssimos, mal sabiam escrever, a internet simplesmente não existia no mundo em geral e ninguém em sã consciência poderia conceber o que viria a ser uma tabuleta, um "tablet". Isto só para dizer que, hoje, as possibilidades de acesso à música são imensamente maiores do que há trinta anos, o que, trocado em miúdos, significa que a nossa criança alcançará a quantidade de música que o maior compositor da História conseguiu desfrutar com idade ainda mais tenra do que o seu tio dos anos 80.

O problema é que essa exposição avassaladora aos sons organizados e ritmados não produziu mais um Beethoven que fosse. O Gabriel, por exemplo, um garotinho de 4 anos, manipula como gente pequena o "iPad" com tela de 7 polegadas que ganhou da bisavó no último Natal, mas não tem muita paciência para ficar com os dedinhos parados a fim de "curtir", digamos assim, uma musiquinha que dure mais do que 15 segundos.

Pode-se mesmo supor, com razoável chance de sucesso, que o gosto musical médio das pessoas tem se deteriorado na mesma velocidade dos avanços tecnológicos, apesar das amplas facilidades disponíveis para se acessar e escutar o que houver de mais revolucionário, novo e remoto em termos de música e técnicas musicais.

Entramos cada vez mais no império dos barulhos e das melodias fáceis. Como diz Martinho da Vila, criticando os sambas que atualmente tocam nas rádios, "Dessas músicas que estão por aí eu faço umas dez todo dia. É mole!" Os barulhos - estes, os eletrônicos, os sertanejos, os mais pedidos, mais vendidos e mais ouvidos - mostram-se perfeitos para a boçalidade de atulhar o carro de potência sonora e sair despejando mau gosto ao longo de ruas e avenidas, impondo a todos a ignorância musical e a indigência intelectual do seu feliz proprietário.

Não nos restam mais muitos resquícios de qualidade naquilo que, chamado de MPB, foi outrora um motivo de justo orgulho nacional. Regredimos em letra, música e harmonia, em poesia, sonoridade e ritmo.

A barulheira geral, com música ou sem ela, tornou-se tão fluida e onipresente que não conseguimos mais desfrutar de 30 segundos de silêncio absoluto para ficarmos um pouquinho por conta dos ruídos: dos ruídos do vento nas folhas das árvores, dos ruídos da natureza no meio do mangue, do ruído das águas - dos rios, do mar, da chuva - em busca do seu destino, dos ruídos dos nossos pensamentos. Ao contrário, nos assustamos com qualquer calmaria como se fosse a própria morte.

E isto é o mais triste da história: irremediavelmente empobrecidos e soterrados pela mediocridade, não conseguimos atingir a genialidade de Beethoven nem, tampouco, tirar algum proveito da sua surdez.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"