As águas vão rolar

Por causa da radicalização do racionamento de água em sua cidade, Camila e seus filhos começaram a urinar só no ralinho do banheiro. Antes, quando tinham água dia sim, dia não, era permitido usar o vaso, mas a descarga só podia ser acionada no quinto xixi. Camila deixava um caderninho e uma caneta no banheiro, para os filhos anotarem seus xixis e saberem o momento certo de despachá-los (só pelo cheiro e pela cor da água já dava para saber, mas Camila era taxativa: tinham que anotar no caderno e usar a descarga apenas quando cinco xixis estivessem lá dentro). Depois, quando o racionamento passou de 24 para 48 horas, Camila aboliu a descarga para xixi, autorizando-a apenas para fezes, e, mesmo assim, só dia sim, dia não. Que os filhos comessem menos e segurassem mais o cocô – “Só um dia de espera não faz mal”, dizia aos meninos.

Mas aí veio o desarranjo intestinal do Alfredo, o filho mais novo, que na tarde anterior devia ter comido alguma coisa estragada na escola e começou a passar mal, dando mostras de que usaria a descarga muito mais do que o autorizado por Camila.

Dito e feito.

De meia em meia hora Alfredo usava o banheiro, despejando no vaso esguichos cada vez mais volumosos de um líquido amarronzado cheio de pedacinhos de coisas que Camila identificou como sendo tomate, milho e ervilha, que ela própria despachava, com medo do filho gastar muita água na descarga. E para compensar o gasto extra, não lavava vasilhas, que se empilhavam na pia da cozinha e empestavam o ar com um cheiro horrível de comida azeda, atraindo moscas, formigas e uns vermezinhos amarelos que pareciam filhotes de lesmas.

No dia seguinte, Alfredo piorou, ia à privada de quinze em quinze minutos, para desespero de Camila, que já aceitava a ideia de obrigar o filho a usar só o ralo do banheiro, como já faziam todos com o xixi. E mais desesperada ainda ela ficou quando, por volta de dez da manhã, a água da caixa acabou, e no rádio ela ouviu a notícia de que no dia seguinte também não haveria abastecimento em seu bairro. Três dias seguidos sem água?

E o pior ainda estava por vir, porque naquele mesmo dia os outros três filhos de Camila também começaram a passar mal, sentindo as barrigas borbulharem e doerem, e uma diarreia brava – das mais bravas que Camila tinha visto até então – tomou conta de toda a família. Como seu quintal era cimentado, não permitindo a abertura de fossa, o jeito foi usar o ralinho do banheiro como privada, tentando acertar os jatos da diarreia no buraco sem espirrar, o que foi impossível. A filha mais velha, por exemplo, não acertava o ralinho de jeito nenhum, pois devido a uma anomalia que ela tinha no cu, seus esguichos saíam para os lados e para cima, não para baixo – e sempre com muita pressão –, sujando paredes, bancada, espelho, chão e teto sem dó nem piedade.

Logo a Secretaria de Saúde constatou que aquilo era uma epidemia, talvez causada por um vírus, que se espalhava rapidamente pela cidade, deixando a população desesperada (principalmente os mais pobres, que ficavam até cinco dias sem ver uma gota de água em suas casas).

Em meio à confusão que se armou, Camila organizou uma passeata dos SEM ÁGUA, SUJOS E FEDIDOS até a praça da câmara municipal, onde uma multidão se reuniu exigindo providências das autoridades públicas e da companhia de abastecimento de água da cidade. (Os mais afetados pela diarrreia iam deixando poças de fezes liquefeitas pelo caminho, que ao se encontrarem umas com as outras formavam verdadeiras enxurradas no asfalto. O cheiro era insuportável).

Cerca de dez mil pessoas se aglomeravam em frente à câmara quando de repente surgiu na avenida um trio elétrico tocando marchinhas de carnaval. Imediatamente o povo parou de gritar e se deixou tomar pela alegria da música. Afinal, protestar para quê? Não ia adiantar nada mesmo.

Na mesma hora, os SEM ÁGUA, SUJOS E FEDIDOS se transformaram num grande bloco carnavalesco, para alívio daqueles que, junto com a seca, poderiam ser responsabilizados pela falta de água na cidade (por incompetência, burrice ou desorganização).

E atrás do trio elétrico, o povo (sem água, sujo e fedido) cantava:

As águas vão rolar

Garrafa cheia eu não quero ver sobrar

Eu passo mão na saca, saca, saca-rolha

E bebo até me afogar

Deixa as águas rolar...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 06/03/2014
Código do texto: T4717370
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