crônica de um desejo
Quando trouxe Marlene pra casa não sei se foi pela razão correta. Marlene estava acostumada com grandes ambientes, não tinha compromisso com horarários e vivia conforme o coração de alguém batesse por ela. Meu apartamento, um lugar microscópico no coração da Bela Vista. E logo os vizinhos passaram a existir com a chegada de Marlene, antes eu não os tinha, estavam ali, atrás das portas, em seus mundos também exiguos. então precisava tomar uma atitude, os papel higiênico ficam em frangalhos todos os dias quando chega a noite, o sofa rasgado pela sua vontade de liberdade. ai que tá, creio que de verdade mesmo, eu não queria marlene em casa. não havia espaço. não poderia dizer isso a giovana, dizer que aquela sua idéia formidável não tinha sentido morando num lugar tão sem vida e tão cheio de paredes. mas as pernas de giovana falaram mais alto, os olhos, a forma que falou, a alegria quando eu aceitei e aquilo de certa forma me tocou em algum lugar mais sensível. uma coisa é agradar uma moça no seu devaneio salvador outra era conviver com Marlene, gritando, insatisfeita com o que eu podia dar pra ela. então veio a primeira carta: vou te matar se não der um fim nessa cachorra, ou então uma de cunho moralista, como pode fazer isso com um bichinho de Deus, você vai pagar isso em algum momento. então veio o medo, a vontade de me libertar daquela situação, o rosto de giovana. como seria desagradá-la, e o amor que nos beirava, será que resistia a minha desistência a marlene. Leva Alex, Leva, vai ser uma ótima companhia. não foi, levei um empurrão no queixo de um morador que dizia não dormir desde que levei a cachorra pra casa. no trabalho ficava desolado. quando não se tem alternativas parece que só a tristeza consegue dizer algo de substancial. então tomei coragem. peguei a marlene e pus no carro. andamos bem uns 20 km, perto de mairiporâ, parei uma sítio grande, conversei com o dono do lugar. ele topou em ficar com a marlene desde que mensalmente eu depositasse 100 reais para as despezas. olhei pra ele, não sabia se aceitava ou se lhe devolvia umas boas palavras de cunho moral. na hora de deixá-la, eu vi que marlene não estava nem para nada, pra mim, para o sítio, para a galaxia. no caminho de volta percebi como somos bestas ao tirar os bichos de sua convivência natural. imaginei quantos cachorros marlene deixou de conhecer ou brigar nesse tempo em que a tirei do mundo somente porque queria me deitar nas coxas de Giovana.