VALEU!
VALEU!
1. Ele nasceu, em março de 1934, numa pequena cidade ribeirinha de um famoso rio, no sertão do seu Estado. Segundo sua saudosa mãe, mulher de memória privilegiada, na noite do seu nascimento, caía sobre a dita cidade um pé-d´água daqueles.
2. E prosseguia nas suas evocações, sem esconder sua saudade: "Relâmpagos e o ronco ensurdecedor dos trovões chegaram a amedrontar o recém-nascido. Visivelmente assustado, choramingando, ele recusava até meu peito, transbordando de leite, que lhe era oferecido com amor e ternura."
3. Na pia batismal, ele recebeu o nome de um santo venerado pelo povão por causa dos comoventes milagres a ele atribuídos. Mais tarde, adotando-o como seu santo protetor, a ele se aliou de forma incondicional, tornando-se um de seus mais fiéis romeiros.
4. Teve uma infância feliz. Tomou banho de rio; nadou em açudes e lagoas, disputando espaços com patos, galinhas-d´água, jaçanãs, marrecas e viçosos aguapés.
5. Ouviu o canto da juriti; criou papagaios, periquitos, jandaias, bem-te-vis, galos de campina, graúnas, pintassilgos, canários e vários sabiás, que cantavam dia e noite. 6. Chupou manga, graviola, pinha, cajá, laranja, umbu, cajarana, e doces cajus, colhidos no pé, com as próprias mãos.
7. Empinou pipas; ganhou um carneirinho; um velocípede; estilingues com os quais ganhava a caatinga caçando codornas, rolinhas fogo-apagou, cascavel e caldo de feijão.
8. Teve dor de dente, febre, sarampo, coqueluche, papeira e outras doenças que só as crianças têm o privilégio de adquirir.
9. Teve medo de escuro: só dormia com o candeeiro a querosene aceso, de cuja fumaça "saíam marmotas que invadiam" o teto e as paredes do seu pequeno quarto, deixando-o sem um pingo de sono, na sua redinha de três cores, até alta madrugada.
10. E ele foi crescendo. Vestiu a farda azul do Grupo Escolar; aplaudiu, em desfiles cívicos, o "grito do Ipiranga", nos festejos do 7 de setembro; e bateu palmas para o ditador Getúlio Vargas, no dia 19 de abriu, data do seu nascimento.
11. Fez a primeira comunhão; foi coroinha; rezou nas novenas da padroeira de sua cidade, acompanhando, atento, os piedosos sermões do velho cura condenando os pecadores e anunciando o Juízo Final. Aplaudiu as moças do coral da paróquia, regido por sua tia, uma maestrina respeitada e querida.
12. E ele foi crescendo. De repente deixou a casa paterna, deixou o seu sertão, e ingressou, aos treze anos de idade, num colégio franciscano, dando início à sua longa caminhada com os frades seráficos, que só terminou com sua saída do seminário maior, em Ipuarana, Paraíba, em julho de 1952.
13. Voltando à "vida profana", ou seja, deixando os claustros, partiu para novos desafios: serviu ao Exército Brasileiro; fez o curso científico no Liceu, o melhor colégio oficial de seu Estado; fez vestibular, e, em dezembro de l961, recebeu o anel de bacharel em Direito.
14. Teve uma juventude movimentada e saudável. Trabalhou em jornais e rádios como redator e copidesque. Namorou muitas e belas mulheres. Até que, em junho de 1965, casou. Em 2015, portanto, festejará bodas de ouro.
15. Advogou durante mais de quarenta anos e, no mesmo período, exerceu o cargo de Procurador do Estado, no qual se aposentou, passando, então, a desfrutar o que os romanos chamavam de Otium cum dignitate.
16. Hoje ele vive ao lado de sua mulher, dois filhos, noras e cinco netos, feliz da vida.
Eis, pois, um resumo da vida desse cara. Mas quem é esse cara? Esse cara sou eu.
17. Chego, hoje, gloriosamente aos meus 80 anos, lembrando a todos o que disse Machado de Assis: "A mocidade não está na certidão de nascimento." E aos que de mim ainda se lembram, despeço-me, aqui, repetindo Ravel: "Mas há tantas músicas esperando ser escritas".
Valeu!
VALEU!
1. Ele nasceu, em março de 1934, numa pequena cidade ribeirinha de um famoso rio, no sertão do seu Estado. Segundo sua saudosa mãe, mulher de memória privilegiada, na noite do seu nascimento, caía sobre a dita cidade um pé-d´água daqueles.
2. E prosseguia nas suas evocações, sem esconder sua saudade: "Relâmpagos e o ronco ensurdecedor dos trovões chegaram a amedrontar o recém-nascido. Visivelmente assustado, choramingando, ele recusava até meu peito, transbordando de leite, que lhe era oferecido com amor e ternura."
3. Na pia batismal, ele recebeu o nome de um santo venerado pelo povão por causa dos comoventes milagres a ele atribuídos. Mais tarde, adotando-o como seu santo protetor, a ele se aliou de forma incondicional, tornando-se um de seus mais fiéis romeiros.
4. Teve uma infância feliz. Tomou banho de rio; nadou em açudes e lagoas, disputando espaços com patos, galinhas-d´água, jaçanãs, marrecas e viçosos aguapés.
5. Ouviu o canto da juriti; criou papagaios, periquitos, jandaias, bem-te-vis, galos de campina, graúnas, pintassilgos, canários e vários sabiás, que cantavam dia e noite. 6. Chupou manga, graviola, pinha, cajá, laranja, umbu, cajarana, e doces cajus, colhidos no pé, com as próprias mãos.
7. Empinou pipas; ganhou um carneirinho; um velocípede; estilingues com os quais ganhava a caatinga caçando codornas, rolinhas fogo-apagou, cascavel e caldo de feijão.
8. Teve dor de dente, febre, sarampo, coqueluche, papeira e outras doenças que só as crianças têm o privilégio de adquirir.
9. Teve medo de escuro: só dormia com o candeeiro a querosene aceso, de cuja fumaça "saíam marmotas que invadiam" o teto e as paredes do seu pequeno quarto, deixando-o sem um pingo de sono, na sua redinha de três cores, até alta madrugada.
10. E ele foi crescendo. Vestiu a farda azul do Grupo Escolar; aplaudiu, em desfiles cívicos, o "grito do Ipiranga", nos festejos do 7 de setembro; e bateu palmas para o ditador Getúlio Vargas, no dia 19 de abriu, data do seu nascimento.
11. Fez a primeira comunhão; foi coroinha; rezou nas novenas da padroeira de sua cidade, acompanhando, atento, os piedosos sermões do velho cura condenando os pecadores e anunciando o Juízo Final. Aplaudiu as moças do coral da paróquia, regido por sua tia, uma maestrina respeitada e querida.
12. E ele foi crescendo. De repente deixou a casa paterna, deixou o seu sertão, e ingressou, aos treze anos de idade, num colégio franciscano, dando início à sua longa caminhada com os frades seráficos, que só terminou com sua saída do seminário maior, em Ipuarana, Paraíba, em julho de 1952.
13. Voltando à "vida profana", ou seja, deixando os claustros, partiu para novos desafios: serviu ao Exército Brasileiro; fez o curso científico no Liceu, o melhor colégio oficial de seu Estado; fez vestibular, e, em dezembro de l961, recebeu o anel de bacharel em Direito.
14. Teve uma juventude movimentada e saudável. Trabalhou em jornais e rádios como redator e copidesque. Namorou muitas e belas mulheres. Até que, em junho de 1965, casou. Em 2015, portanto, festejará bodas de ouro.
15. Advogou durante mais de quarenta anos e, no mesmo período, exerceu o cargo de Procurador do Estado, no qual se aposentou, passando, então, a desfrutar o que os romanos chamavam de Otium cum dignitate.
16. Hoje ele vive ao lado de sua mulher, dois filhos, noras e cinco netos, feliz da vida.
Eis, pois, um resumo da vida desse cara. Mas quem é esse cara? Esse cara sou eu.
17. Chego, hoje, gloriosamente aos meus 80 anos, lembrando a todos o que disse Machado de Assis: "A mocidade não está na certidão de nascimento." E aos que de mim ainda se lembram, despeço-me, aqui, repetindo Ravel: "Mas há tantas músicas esperando ser escritas".
Valeu!