Textos perdidos

TEXTOS PERDIDOS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 12.02.14)

Perdem-se textos - perdem-se muitíssimos textos - por diversos motivos. Um deles tem a ver com o perecimento do suporte sobre o qual eles foram escritos: a folha de papel inadvertidamente jogada fora, o arquivo eletrônico que sofreu pane irrecuperável e não poderá ser decodificado pelos tempos afora: quanto mais virtuais os meios de escrita, mais reais e dolorosas as perdas que se verificam.

Perdem-se também os textos que nunca foram nem jamais serão escritos: um sujeito ou uma sujeita de talento que resolva partir para outra porque não encontra o mínimo reconhecimento ou não recebe o menor apoio e incentivo para seguir persistindo, deixa de escrever obras que, para nossa desgraça, jamais haveremos de ler. Por isso é que as pessoas sérias clamam por políticas de Estado para privilegiar o talento das letras, ao invés das habituais práticas de governo que favorecem os amigos ineptos do reizete ou reizinho de plantão, mais realista do que o rei, a impor "talentos" através de cartas de recomendação, articulações, cambalachos, indicações, imposições e pedidos, tudo em nome da quantidade de votos, não da qualidade de letras que o protegido tem o dom de oferecer.

Perdem-se textos quando não damos crédito àquelas matérias brutas que surgem subitamente e, desajuizados, não percebemos que aquilo é um texto talvez primoroso (claro que o primor textual sempre estará associado ao talento do escritor que se dispuser a manusear os elementos que desfilam perante seu olhar e sua imaginação). A verdade é que não raro descartamos a potencialidade de texto na resposta de uma humilde servidora de supermercado quando te diz que, "na verdade, a Empresa não fabrica nem produz nada, apenas negocia com empresas que usarão a sua marca para desenvolver determinado produto com a qualidade esperada e com um preço supostamente mais baixo do que a concorrência. Quando isto - preço e qualidade - não acontece, o contrato é rescindido e a Empresa busca novo fornecedor, num processo que pode levar algumas semanas até que o novo produto, com as características já conhecidas e apreciadas por nossos clientes, volte às prateleiras".

Mas perdem-se textos quando não vamos ao encontro deles, posto que é da sua natureza intrínseca, mormente das crônicas, insinuarem-se despudoradamente ao cronista, oferecendo-se à sua pena sem qualquer rubor nas faces, procurando-o na intimidade do seu recolhimento pessoal, visitando-o durante sua reclusão social, povoando-lhe os mais ardentes sonhos, aterrorizando-o em seus pesadelos mais cruéis, sussurrando-lhe maliciosos aos ouvidos sugestões impublicáveis, provocando-o como se testassem sua suposta criatividade: quando o cronista não sai para sua habitual caminhada de uma hora na manhã esturricante de domingo ele perde a oportunidade de ouro de encontrar sua crônica sentada, digamos assim, à beira do caminho; quando abdica de ir à Ressacada na tarde estivo-infernal de domingo, depois de anos sem perder uma única partida no estádio estando na cidade, e mesmo acreditando piamente na vitória, apesar da situação deprimente do seu time no campeonato, o cronista se desencontra da crônica que, caprichosa, postava-se indolente nos degraus da arquibancada.

Quando o cronista se omite assim, por algum motivo justo ou não, a crônica não o visita - e o resultado pode ser algo como isto que se lê nesta quarta-feira de uma anunciada frente fria que, durante cinco horas, fará despencar os termômetros para amenos 32 a 33°C.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"