ESTÁ VENTANDO (SAUDADE DE ERICO VERÍSSIMO)

Tenho forte ligação com Erico Veríssimo e tento explicá-la nos momentos em que preciso entender fatos que comigo acontecem. Muitas vezes me pego em pesquisas interiores, numa espécie de análise psicológica de mim comigo mesma.

Lembro-me de que me entristeci profundamente quando um infarto surpreendeu o Brasil e levou o mais ilustre representante de Cruz Alta para longe, seria outro austro? Era novembro de 1975.

Também de forma súbita senti a dor de um corte na carne, que me alcançou a alma. Apenas hoje consigo atinar com aquele fenômeno de desalento que me pegou de jeito, pois no ferver da dor daquele dia, era-me difícil compreender tanto sentimento de perda.

Com Erico viajei na adolescência e cheguei à juventude, percorrendo o Rio Grande do Sul. Fiz-me íntima dos pampas gaúchos e cavalguei feito um peão de estância, amazona percorrendo coxilhas, cabelos soltos ao vento, este que mexia extremamente com os sentidos de Ana Terra.

Tanto me enfiei em O tempo e o Vento quando garota, que me parecia vivenciar a epopéia histórica do Rio Grande e desmistifiquei as mitologias dessa história, mesmo em tenra idade. Dava-me a impressão de que eu habitava o povoado de Santa Fé e de que unia minhas forças às de Bibiana, cuja fortaleza silenciosamente contestadora funcionava como meu álter ego. Com ela aprendi a exercer a luta determinada pelo amor, muito mais que pela força.

Bibiana era personagem lucidamente submissa, contraposta a Rodrigo Cambará, Capitão que provocou grandes discussões na Moderna Literatura Brasileira ao despertar admiração por sua coragem e simpatia, por outro lado, atiçou que fizessem críticas a sua conduta moral.

O encanto brotava em mim, misturado às figuras de linguagem largamente utilizadas por Veríssimo e aos vocábulos castelhanos. Dessa forma eu era conduzida por horas a fio pelas estradas da leitura.

Enveredei por O Retrato, parti para O Arquipélago e desaguei em Incidente em Antares, que me mostrou outro Erico Veríssimo. Desta feita, longe da apologia a heróis e mostrando o ser humano com suas falhas, virtudes e defeitos, como cruamente é.

Conta a biografia de Veríssimo que ele era filho de farmacêutico, que cresceu entre prateleiras de remédios, atrás do balcão da farmácia e que, em determinada noite, aos onze anos, foi chamado às pressas para segurar uma lâmpada, enquanto o pai atendia um homem cortado a navalhadas. Essa violência chocou-o demasiadamente. Mais tarde, escreveu sobre isso: “naquela noite nasceu em mim o sentimento de justiça, de repugnância pela violência, que me domina até hoje. Eu sentia medo e náusea, mas não larguei a lâmpada.“

Ainda bem que aprendeu a não soltar a o que de fato brilha. Seria esse caso da vida de Erico mais uma metáfora da luz sobre a realidade de uma prática literária indubitavelmente iluminada? Atrevidamente respondo: sim! Ele iluminou minha juventude com a lâmpada, através de meus olhos que jamais se fecharam. Iluminou também outros leitores, os quais descobriram a delícia de viajar nas sendas da imaginação.

Sentindo saudade da juventude embalada pela literatura, trilhando por caminhos tão bem traçados que abriam veredas para outros autores, sinto hoje uma enorme vontade de dizer que “não vou pisar no poncho de ninguém _ Buenas, e me espalho”!

Não sei se é coincidência ou acaso, mas venta muito lá fora neste instante e, se é verdade que nada neste mundo ocorre por acaso, “sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando”. Estou em casa.

Londrina, 03.03.2014

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 03/03/2014
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