Velho cancioneiro



          No dia 7 de maio faz cinco anos que o Adelino Moreira morreu. No dia da sua morte, quis homenageá-lo com uma crônica em 15 tópicos. Cheguei a escrevê-la. Mas, não sei por que, não consegui publicá-la. Faço-o, agora, nas páginas de o Recanto das letras.

               Certo de que nunca é tarde para se recordar a história e se reverenciar a memória de quem, como o bom Adelino, viveu em permanente estado de dor-de-corno... e procurando matar a dos outros...

                 Meu Adeus ao Adelino

              1. Pelo rádio, ouço a notícia da morte do Adelino Moreira. Morreu dormindo. 
Ponho o papel na máquina, e começo a escrever o que, com muita boa vontade, poderá, ao final, ser chamado de seu necrológio.
               2. Em boa hora, dou-me conta de que escrever o necrológio do saudoso compositor lusitano, não será a melhor e a mais legítima maneira de lhe exaltar a memória. 
Por isso, resolvi prestar-lhe uma singela homenagem, recordando, aqui,  algumas de suas canções; talvez as mais conhecidas.
               3. Vamos lá. Atingido em cheio por violenta fossa, abrandei a saudade que, indômita, estraçalhava-me o coração, ouvindo "Negue" e "Chora comigo", na voz de Nelson Gonçalves, o melhor interprete das músicas do Adelino.
               4. No vigor dos meus vinte anos, namorei uma cearense excessivamente romântica. Nas serestas que fazia na sua janela, de veneziana vermelha, se não saísse "Escultura" e "Fica comigo esta noite", ela não hesitava em me negar um demorado beijo, no dia seguinte.
               Para não perder este excelso afago, obrigava o seresteiro a cantar "Escultura" e "Fica comigo esta noite" mais de uma vez.
               5. Perambulando pelos bares, nas madrugadas da pacata Fortaleza dos anos 1950, aonde chegava, sempre encontrava alguém, violão ao peito, cantando "Argumento", "Chora comigo", "Extase" ou "A deusa do asfalto".
 Por conta disso, o consumo de bebida e de tira-gosto crecia, sob os aplausos e o sorriso largo dos donos dos botecos da capital cearense.
               6. No início dos anos 50, freqüentei um bar de Fortaleza, muito badalado, que, depois da meia-noite, só acolhia eméritos farristas. Sua enorme eletrola, iluminada e colorida, tocava, sem parar, madrugada adentro, a canção "Devolvi", na voz da dengosa Núbia Lafayette.
                7. Ouvindo Núbia, irrecuperáveis beberrões, com dezenas de cervejas na pança, debruçavam-se por sobre as mesas do famoso bar, que ficava numa esquina da Praça José de Alencar, e danavam-se a conversar com alguém que somente eles viam!
               8. Levado por companheiros de patuscada, fui a um movimentado programa de auditório, na simpática Rádio Iracema de Fortaleza. O programa, comandado por um irrequieto animador, já falecido, era a grande diversão ou atração das ingênuas tardes de domingo na capital alencarina.
               9. Naquele dia, uma jovem e bela cantora cearense, voz maviosa, atacou de "Cinderela". O auditório quase veio abaixo. Não me lembro do seu nome. Dizia-se no Ceará, que ela "cantava e encantava".
               10. A bossa nova quase tirou o Adelino do rádio. Seus discos deixaram de ser programados, com a freqüência desejada por seus inflamados e inumeráveis fãs. Os disc-jóqueis, de repente, preferiam tocar João Gilberto e seus seguidores. 
               11. Mas nos cabarés da vida, para onde acorriam homens e mulheres em busca da cura de sua dor-de-corno, Adelino continuava presente, impávido, tocado. Croners anônimos mexiam com os boêmios cantando "Mariposa"  e "Meu vício é você".
               12. Nas madrugadas ermas de minhas farras, não apenas uma, mas milhares de vezes, surpreendi valorosos paus-d´águas cantando Adelino. O dia começava a clarear, e lá surgiam eles, cambaleantes, cantarolando "A flor do meu bairro" e principalmente "A volta do boêmio".
               13. Ao som de suas dolentes canções, algumas bregas, mas honestas, descentes, eu vivi momentos difíceis e outros de indescritível felicidade. 
               14. Ouvindo-as em religioso silêncio, ultrapassei surpreendentes borrascas, que, no primeiro instante,  pareciam-me intransponíveis...
               15. ADEUS velho Cancioneiro! 
               Compositor chorão, romântico, boêmio permanentemente apaixonado... As madrugadas de serestas e as noites de amores sentirão a tua ausência...

      


                
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 01/05/2007
Reeditado em 21/10/2019
Código do texto: T471148
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