À toa

À toa




Olha, eu só queria que ela me visse com a camiseta pólo da Hering, verde alguma coisa, alegre, talvez, ela diria “puxa, como você está bonito”, eu ficaria mais feliz, não pelo meu ego, mas por uma emoção ainda escondida no armário, algo antigo, algo de muito tempo atrás que gostaria de ser revivido. A gente abre mão de tanta coisa e sente falta de outras.

Passei pela tangente nos últimos tempos, e de quebra ganhei uma falta de familiaridade com as cercanias e com as pessoas, qual, havia pouco o que falar com quem foi caro, pouco a observar numa paisagem que outrora fez uma tremenda importância.

Aquele grande amigo talvez nunca tenha sido um amigo e sim uma invenção da minha necessidade de cultivar uma amizade. Como se fosse um favor apocalíptico ele me brindou com ocasionais palavras e depois construiu entre nós uma barreira intransponível. Não foi fato de uma semana, foi labuta de anos. Um tanto tarde percebi que por ali não se joga conversa fora, não há gracejos, trocadilhos e nem mesmo as questões vitais: como vão sua saúde e seus sonhos?

Muito raramente percebo as coisas de bate pronto. Talvez finja e invente estórias com o fito de contornar o que possa vir a doer senão num primeiro instante, logo em seguida.

Sim, os últimos tempos esgueiraram-se pela tangente e ainda por cima aquela relação amorosa, no final de contas, se revelou um desses engodos históricos que, quando a gente olha para trás, ou chora ou dá risada.

Tenho tido memoráveis conversas com desconhecidos. Deveria ter me inclinado à tarefa de listá-los, bem como o conteúdo das prosas. Mês passado, de tanto ficar olhando na direção do cobrador, chamou-me atenção uma folha em branco com pontinhos pretos que ele não desgrudava os olhos. Solitários se arranjam como podem. “Sou estudante de violão clássico”, disse ele, dobrando a folha com o pentagrama. Havia dois pontos pela frente, perguntei-lhe do Segovia a título de mapear o panorama e ele calvo, na casa dos 50, confirmou tocar algumas peças, Depois trocamos outros nomes, todos desconhecidos um para o outro, ok, afinal, destinos diferentes nem sempre reúnem repertório semelhante.

Wagner, o zelador, está contando os dias para suas férias, “quero sair deste inferno e ir pro sul da Bahia, na divisa com Sergipe”. Eu disse “norte”. Ele retrucou “você é de lá”? Ah, o ego... Bom, deu pra contornar e a conversa fluiu. “Quando serão as férias?”. “Em junho”. Em plena brrrr Copa... O olhar dele planava, que nem o personagem do Jamie Foxx no filme “Colateral”, que carregava a foto de um paraíso tropical no quebra-sol do carro. Quem de nós não as tem? As minhas não estão impressas e parte delas vem da infância.

Vamos supor que você toca um realejo. Foi o que sobrou para você fazer na curta existência terrena. Aos sábados você limpa aquela gaiolinha, lubrifica a engenhoca, substitui os papeizinhos, faz um mimo ao papagaio e vai para esquina, tocá-lo, e olhe hein, num bom dia você agradece a oportunidade de se alegrar com seu projeto. Não lhe parece estranho que as pessoas do seu círculo lhe neguem constantemente a indagação, uma única vez que seja: como vai o seu realejo?

Bom, eu acho estranho, ou talvez sugestivo, ah, quem sabe isso seja uma pista... Mas aos 54 anos incompletos, ultimamente, toda hora em que eu toco um botão invisível que aciona o extrato, também invisível, sobre o citado período, sempre aparece automaticamente a palavra SONHO. Quase ouço uns tapinhas nas costas e uns sibilos: “está tudo bem, cara, experiências são para ser vividas”.

Com um acento elas se tornam vívidas.

Bom, sabadão de carnaval, sabe-se lá quantos ainda me restam, ainda por cima com uma camiseta novinha em folha, se der tempo ainda chego para o chá, agora vou caminhar, quiçá pensando que através da imaginação realidades são descobertas.



(Imagem: Henri Matisse, Abraço, 1944)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 01/03/2014
Reeditado em 27/04/2021
Código do texto: T4711390
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.