Praticamente a França
É inevitável, eu sempre estico o olho para enxergar o que as pessoas ao meu redor estão lendo. Não é uma tarefa tão simples, pelo menos se você não quer dar na vista. Também é verdade que nem sempre fico muito satisfeito quando descubro do que se trata o livro. É que há muitos livros de autoajuda e, sobretudo aqui em Brasília, muita literatura de concurso público – porque, é lógico, este é o principal motivo para alguém ler na vida. Ainda assim eu não resisto a tentar identificar o livro e se puder leio junto com a pessoa.
Hoje cedo foi exatamente isso que tentei fazer dentro do ônibus. Vi uma moça tão concentrada na leitura que desejei saber o que ela estava lendo. Para minha surpresa, descobri que era Kafka – aquela dispensável “Carta ao pai”, mas, ainda assim, era Kafka. E ela não apenas lia como de vez em quando sublinhava as partes mais importantes. Diante disso, a coisa mais natural a se fazer era me levantar, ir até ela e pedi-la em casamento. E então teríamos a vida inteira para discutir se o velho Hermann era mesmo tudo isso que o filho pinta dele, e se não é admirável que nessas condições Kafka tenha escrito o que quer que seja, e o que ela faria se fosse Max Brod e Kafka lhe pedisse para queimar seus escritos.
Mas eu ainda hesitei um instante, e foi precisamente aí que entrou no ônibus um mulher que trazia consigo o “1984” do Orwell. Achei inacreditável, mas ela realmente sentou-se e começou a ler também. Imaginei como seria envelhecer ao lado dela, ter como nossa briga mais comum a discussão sobre qual livro está mais próximo da realidade, o “1984” ou o “1985” do Burgess – ela francamente orwelliana, e eu pela pura controvérsia.
Essa nova aparição me fez balançar e eu já não sabia mais com quem me casar – não queria que nenhuma delas escapasse. Enquanto eu pensava no que fazer, retomei a minha própria leitura – Miguel Ángel Asturias. Um ônibus em que se lia Kafka, Orwell e Miguel Ángel Astúrias. Praticamente a França.