30 anos depois
Rodrigo Capella*
Foi dada a largada para festejarmos Clarice Lispector. Exposições, lançamentos e debates espalhados pelo país procuram entender e decifrar a magnitude da autora de “A Hora da Estrela” e “Água-Viva”. Não é pra menos. Clarice era o próprio mistério em pessoa e verso: o que sinto eu não ajo/o que ajo não penso/o que penso não sinto.
Nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, a autora iniciou a carreira com “Perto do Coração Selvagem”, com apenas 23 anos e logo arrematou o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, ao narrar a história de Joana e propor que o leitor desvende o complexo e atraente universo feminino. Há, com certeza, alguns elementos de James Joyce, escritor irlandês e autor de “Ulisses” e “Retrato do Artista Quando Jovem”, principalmente quando ela aborda elementos da intuição e experiências pessoais na adolescência.
Em seguida, Clarice, com todo o sucesso da estréia, lançou “O Lustre”, “A Cidade Sitiada” e “Alguns Contos”, mas “A Paixão Segundo G.H”, publicado vinte anos após o primeiro livro, é que veio a colocá-la novamente em evidência, principalmente pela ousadia em propor que um inseto tirasse a rotina de uma pessoa.
O melhor é que G.H pode ser qualquer um, não necessariamente uma mulher aos berros com medo de um ser nojento. O livro, por si só, nos chama atenção para os detalhes e, em sua essência, defende que a rotina só é boa quando tem alegria, sentimento e, principalmente, atitude. Essa era Clarice, uma mulher com todos esses atributos e mais: uma escritora que sempre buscou se superar.
“A Hora da Estrela”, lançado em 1977, no ano de sua morte, veio a comprovar. A autora apoiou-se no narrador Rodrigo S.M. para contar a história de Macabéa, uma mulher sem atrativos que desejava ser Marilyn Monroe e vinha de Alagoas para o Rio de Janeiro, onde passa a dividir um quarto com mais quatro pessoas.
Essa história se confunde, em alguns aspectos, com a da própria Clarice. Quando saiu de seu país natal, a autora passou por Maceió e, em seguida, foi a Terra Maravilhosa, junto com os pais e os irmãos. Seria coincidência? Claro, que não. Em se tratando de Clarice, isso não existe. Tudo é bem arquitetado, planejado e desenhado nos mínimos detalhes.
Prova disso é que Rodrigo S.M., em alguns momentos, se coloca na própria posição de um escritor reflexivo e demonstra alguns sentimentos da autora: “escrevo neste instante com prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita”. E prossegue colocando mais emoção no texto: “de onde, no entanto, até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e coagular em cubos de geléia trêmula”.
Seria “A Hora da Estrela” uma autobiografia de Clarice? Em alguns elementos sim, quer dizer, na maioria deles. Tão paciente quanto Rodrigo S.M, Clarice ficou aguardando a cidadania brasileira, tão forte em atitudes quanto o próprio narrador de “A Hora da Estrela”, a autora entrou em contato com o então presidente Getúlio Vargas quando considerou que o processo de naturalização estava atrasado.
Pois, é. Essa era Clarice Lispector, com um patriotismo exacerbado a la “Policarpo Quaresma” e com uma escrita repleta de simplicidade: “eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada”.
(*) Rodrigo Capella é escritor e poeta. Autor de vários livros, entre eles "Transroca, o navio proibido", que vai ser adaptado para o cinema pelo diretor Ricardo Zimmer, e "Poesia não vende", que traz depoimentos de Ivan Lins, Moacyr Scliar e Barbara Paz, entre outros. Informações: www.rodrigocapella.com.br