ELES CONTAM MINHA HISTÓRIA...
Cansada da bagunça no meu escritório,decidi arrumar meus livros,colocando todos em grandes estantes de madeira para facilitar  a localização,pois,alguns somem quando eu mais preciso ,como  é natural na Lei de Murphy –quando uma coisa tem que dar errado,dará –sei lá porque.
Tendo uma casa  ,praticamente,decorada com livros ,um montinho aqui,outro acolá,no quarto,no terraço ,na sala de jantar e até mesmo na cozinha,mas,estes, como os cadernos ancestrais de minha mãe e avó, devido á minha baixa qualidade de cozinheira que não vive sem os livros de receita.Mas,voltando ao assunto que me trouxe ao PC, essa arrumação foi uma viagem no tempo! Enquanto passava o aspirador e pegava os exemplares para por nas prateleiras, voltei ao passado mais remoto,um passado de 65 anos atrás,quando fui apresentada a esses amigos silenciosos que me acompanham a vida inteira.
Começou com as obras infantis do Lobato,que minha mãe me presenteou no meu aniversário, numa  edição encadernada num tom grená,que me abriu as portas do mundo;identifiquei-me de cara com a Emília e,criança solitária,apreciei os novos amigos,Narizinho,Pedrinho,o Visconde de Sabugosa ,o Príncipe Escamado,Tio Barnabé e seu cigarro de palha fedorento,além de saborear os quitutes de Tia Nastácia e o saber de D.Benta.Passei os primeiros anos da minha infância num sítio com  um riacho,ladeado por mangueiras ,cujos frutos caiam nas nossas cabeças enquanto nos banhávamos,crianças despreocupadas e bulhentas.
Com o Mestre Lobato aprendi História,Geografia,Matemática,Ciências,Filosofia,mas,sobretudo aprendi a conhecer o mundo e estudar personagens,pois,os seres humanos são todos iguais nos seus sentimentos e idiossincrasias.Como Xavier de Maistre fiz uma “viagem á roda do meu quarto”.Muito produtiva,por sinal.
Viagem que continuou nos 18 volumes do “Tesouro da Juventude”,que,no meu tempo,quase todo jovem era obrigado a ter.Como a Enciclopédia Britânica.
Lembro que na casa do meu avô paterno,Antonio Jerônimo,havia uma Bíblia encadernada onde se “assentavam”os eventos familiares:casamentos,nascimentos,mortes.Bons tempos!
E eles foram chegando, os livros; quem queria me dar um presente se valia deles.Até hoje é assim ,com o meu marido.Nada de fores ou joias.Livros.Simplesmente descomplicado.
Levei um tempinho limpando a edição encadernada da Comédia Humana,de  Balzac, uma  coleção de 17 alentados volumes  da Editora Globo ,que comprei ainda adolescente ,quando professora recém – formada fui trabalhar na escola de uma tia.Levei 12 meses pagando esses livros ,comprometendo quase todo o meu salário.Mas,valeu a pena!Fui apresentada ao Dr. Bianchon,apaixonei-me por Lucien de Rubempré e odiei visceralmente as filhas do Pai Goriot.Todos dizem que “O Lírio do Vale”é o mais belo livro de Balzac,um ex- escritor de folhetim,cujo excepcional talento o levou aos píncaros da glória , um dos gigantes da literatura mundial.Muito conhecido é “A Mulher de 30 anos”,mas, para mim,seu maior livro é “Ilusões Perdidas” e pronto.Sem discussão.
Esses escritores,caindo como chuva benéfica numa mente hiperativa,formaram a pessoa que sou hoje.Jorge Amado,com “Capitães de Areia” e Erich Maria Remarque,com “Nada de Novo no Front Ocidental”.inculcaram a indignação no âmago do meu ser e despertaram a guerreira que hibernava dentro de mim.
Já mulher  feita  conheci José Saramago e apaixonei-me;tenho todos os seus livros e considero o diálogo entre Deus e o Diabo,no livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,um monumento da literatura universal.
Adoraria tê-lo conhecido pessoalmente e corri atrás dele por parte da Europa;em Lisboa o procurava na Câmara – era vereador – mas,nunca estava lá.Em  Lanzarote,nas Canárias,numa das minhas viagens transoceânicas,o procurei na sua casa.Estava na Espanha,disse-me o porteiro.
Mas,o diabo arma.Estava meu marido em viagem a Lisboa quando soube que Saramago autografaria na Bertrand.Meu marido é inimigo de “bichas”* e aquela era amedrontadora.Mas,venceu o amor,ele enfrentou a danada e me trouxe o “Ensaio Sobre A Cegueira”,autografado por ele,mandando-me um abraço carinhoso.Uma vez,dormi abraçada com o livro,era quase uma mulher com seu amante,não era Clarice?!
Dos queridos Carlos  Eduardo Novais e Fernando Sabino tenho “quase” todos os livros autografados.
Em 1992 ,viajando num navio cargueiro para a América do Sul e Europa,as noites eram longas e eu comprei muitos livros e revistas para passar o tempo;entre eles ,”La Casa de Los Espiritus”,de Isabel Allende,que lia no deck superior,degustando um licor de kiwi.
A vida é cheia de perdas e ganhos e eu perdi muitos livros;o que não aconteceria se tivesse seguido o sábio conselho de meu pai.Ele dizia,referindo-se a livros e carros.”Livro e mulher não se emprestam;e,se emprestar,melhor emprestar a mulher,porque lavou,tá novo...”
A verdade é que dos 1500 livros que tenho,hoje,se não fossem os perdidos,emprestados e não devolvidos,surrupiados,sumidos,eu já teria perto de 4000.Ando a procurar nos sebos para recuperar alguns,importantes na minha formação. Vocês não imaginam os tesouros que achamos nos sebos!Recuperei boa parte dos livros de Somerset Maugham,entre outros,muita coisa de Gore Vidal e  velhas  Antologias  com versos de antigos poetas franceses como Villón e Baudelaire.E, recuperei o “Gringo Velho”,de Carlos Fuentes,sumido há quase dez anos.
Não poderia listar aqui todos os autores que ajudaram a formar essa pessoinha que sou eu.E,deste mundo só levarei um pesar:de não ter tempo de ler todos os livros do mundo.
Percorrer uma biblioteca é viajar no tempo .Toda a cultura da humanidade armazenada ali,pois,os livros,para mim,são como cápsulas do tempo.O que seria de nós,se,de repente,fosse destruída toda o nosso conhecimento ancestral,quitado todo nosso passado como humanidade?Ter entre nós,ao alcance de nossas mãos,toda essa cultura,
não tem preço!