A pecadora de araque
Anos sessenta, uma cidade balneária e uma infância. A cidade: Santos. A pequena baía onde nasci é conhecida por seu calor senegalesco. Costumo dizer que Deus resolveu ligar um potente secador e fazer uma escova - até a brisa é quente ! Mas, do outro lado dos muros, numa grande avenida mais distante da praia, isso pouco importava. Ali, ficava uma escola de freiras num imenso casarão com dois pavimentos, um grande jardim, um galpão e uma capela. Alheias aos trópicos que só faziam atrapalhar, as religiosas se propunham a dar uma educação cem por cento européia. Nossos uniformes, tão austeros para o clima litorâneo, devo confessar, cairiam bem melhor numa praia da Escócia. No verão, as saias brancas pregueadas eram mais leves, mas sempre acompanhadas de sapatos pretos e meias grossas até os joelhos. A arquitetura soberba desse prédio ficou na minha memória como um lugar quase mágico. No passado foi uma grande mansão construída por uma família de italianos em 1909. Eram os novos habitantes que chegavam através do porto. Os imigrantes italianos representavam nessa época 42 % do total da população da cidade. O prédio lembra uma edificação européia medieval, com muros imitando os castelos do antigo continente e uma grande torre lateral. As cônegas de Santo Agostinho que se originaram na França, chegaram em Santos em 1924, quando compraram o palacete e fundaram o Colégio Stella Maris. Na época em que estudei ali, boa parte dessa beleza ainda estava preservada, como o lindo jardim com seus imensos coqueiros e árvores muito copadas. Lembro-me perfeitamente de madre Loyola, com uma penugem escura no buço desenhando-lhe um bigodinho hilariante. Uma espanhola genuína. Mulher simples e bondosa carregava sempre um pesado sino na mão e era encarregada de tocá-lo em intervalos britanicamente cronometrados: A primeira badalada era quando chegávamos, exatamente as sete e quinze - Nos enfileirávamos para ir a capela e rezar antes da primeira aula. A segunda, na hora do recreio, a terceira marcava o fim do intervalo e a última e gloriosa badalada anunciava o final das aulas ao meio dia e meia. Essa eu adorava ! Mas havia uma, em particular, que me agradava muito. Duas vezes por semana, enquanto estudávamos mergulhadas num silêncio sepulcral, Madre Loyola passava pelo longo corredor, tocando seu sino animadíssima : O padre estava na capela. Era a hora da bendita confissão ! Como uma esponjinha no fundo do mar, a perfeita Stella Maris que migrou de forma enigmática para o deserto, eu ia desidratando lentamente, sobretudo nas enfadonhas aulas de catecismo e Educação Moral e Cívica. O sino de madre Loyola, caía como uma onda fresca e espumante. As meninas que precisavam do santo sacramento tinham permissão para sair da classe afinal, sem a confissão e a remissão dos pecados estaríamos perdidas. Eu era sempre a primeira, que sôfrega, levantava a mão. Confessava semanalmente. Depois de um tempo, muitas me olhavam como se eu fosse uma pecadora inveterada. No longo corredor que dava para a capela eu ia pensando no que dizer ao padre....isso sim, isso não. Convenhamos, duas vezes por semana, com o passar do tempo, tive que desenvolver uma certa técnica para contar pecados. Notei que o padre ficava meio aborrecido e entediado com pecadinhos baratos e foi então, que comecei a elaborar melhor meus pecados. Penso que ali, com seis anos, vítima do primeiro sentimento conhecido como: "o de tédio das horas", desenvolvi um jeitinho próprio para contar estórias. Aprendi a sentir o feed back no padre, o grau certo de dramaticidade e gravidade nos pecados. Lembro que cheguei até mesmo a enforcar passarinhos. Eu os atraía colocando frutas, como mamão depois, os estrangulava sem piedade, justo eu, que adoro todos os bichinhos. Logo percebi que essa foi uma péssima idéia dado que, a reação do padre, junto a veracidade das estórias não vinham em forma de aplausos ou vaias, mas através da penitência com o número de preces. As mais picantes eram até interessantes de criar mas, me traziam um sério inconveniente colocando-me imóvel de novo, pois eu tinha que ficar sentada, as vezes ajoelhada, rezando uma montanha de pai-nossos, salve-rainhas e ave-marias. Comecei então, a dosar o negócio de forma que pudesse validar a minha breve estadia ali. Com um pouco de originalidade e alguns pecados veniais, o padre ficava satisfeito e eu também. Um breve ato de contrição seguido de um pai-nosso, e eu tinha tempo de flanar um pouco pela escola. A primeira parada era o banheiro para jogar uma boa água gelada no rosto quando o sol era de rachar. Adorava me abanar com a saia sentindo o vento fresquinho nas minhas pernas. Um dia a madre superiora, Maria Estela, me pegou em pleno exercício de ventilação, já, com certa habilidade e as calcinhas à mostra. Diferente de madre Loyola, seus olhos atrás dos óculos grossos como fundos de garrafa, ficavam ainda mais desumanos. Vitrificados e distorcidos faiscavam pequenos ódios, já matutando um bom castigo. Tínhamos que chamar todas as madres de "Ma mère" (madre e também mãe, em francês). Ai, como era foi difícil chama-la assim ! Os olhares de madre Maria Estela tinham a gravidade de Saturno em oposição ao sol. Hoje, tenho certeza que ela inverteu o lema de seus fundadores que, segundo São Pedro Fourier é: "Bem a todos e mal a ninguém". Por outro lado, os olhos quase infantis de madre Loyola eram um poço de sabedoria, aquela simples, que vem do coração. Muitas vezes, via-me no jardim, embaixo de alguma árvore frondosa e fazia a famosa: "vista grossa". Nunca me roubou àqueles preciosos minutos de vadiagem. Apenas uma vez - anos depois, quando me flagrou sacando da meia um cigarro mentolado para fumar. Numa fração de segundos, ela apareceu sem que eu notasse. Estendeu a mão, pediu que eu entregasse o cigarro e o enfiou no bolso. Em seguida, mandou que eu fosse imediatamente para a classe. Não sei por que, mas até hoje, ainda acho que ela acabou saboreando aquele cigarrinho amarfanhado. Seus olhos silenciosos, nunca proferiram uma maldade. Acompanhavam meu crescimento à distância. Lá longe, no corredor externo e coberto, como uma galeria, eu avistava sua figura longilínea, passando rapidamente com seu hábito impecável e o avental branco até os pés. Sempre soube que ela me observava, mas como uma espécie de acordo tácito e amigável ela reaparecia uns quinze minutos depois: Fingindo-se surpresa e muito brava, sua fisionomia fechava-se como um céu cinzento antes da chuva de verão. Nessas horas, o bigodinho caía como uma luva ! Ela então, mandava-me voltar para a classe, apontando energicamente o dedo em direção ao prédio, e eu, claro, simulava com absoluta perfeição um tremendo pavor de suas broncas. Como ela adorava aquilo ! Éramos duas - Eu, uma pecadora de araque e ela, uma super_visora !