Jantar com Estupidez

Juca trabalha como jornalista num país governado por uma rainha de nome suntuoso: Estupidez de Aurora Dourada e Pedras nos Rins.

Ele deu azar, porque Estupidez odeia jornalistas, principalmente os que pensam criticamente e manifestam sem medo suas opiniões.

Desde que assumiu o trono, Estupidez mantém uma luta encarniçada contra os cérebros pensantes do reino. Sua política educacional vai firme nesse sentido, e os resultados, até agora, são muito favoráveis: milhares de analfabetos funcionais saindo do Ensino Médio todos os anos, prontos para ouvir o que ela tem a dizer e aceitar tudo sem questionar.

Nas escolas de Estupidez os alunos aprendem em cartilhas produzidas pelo Estado Maior, tudo muito certinho e bonitinho, do jeitinho que tem que ser. Sob o olhar atento dos inspetores de Estupidez, os professores trabalham como metrônomos, lendo trechos da cartilha e ouvindo as respostas decoradas dos alunos, num ritmo só.

Juca não frequentou as escolas de Estupidez. Veio de outro país, onde a educação é diferente, baseada numa pedagogia libertária e questionadora, que forma cidadãos críticos e ativos politicamente. O que ele veio fazer no país de Estupidez é outra história. Coisas da vida...

Como é de se esperar, no jornal onde Juca trabalha não há espaço para a manifestação livre do pensamento, só para festas borbulhantes, casamentos e viagens da elite fútil, futebol, novelas e crimes envolvendo os marginais que se encontram abaixo da lei (os que estão acima, como políticos corruptos ou criminosos oriundos de famílias ricas e tradicionais, por exemplo, não podem ser nem citados no jornal).

No início, Juca era arteiro, adorava brincar com fogo. Arriscava uma crítica aqui, outra ali... Uma vez ele escreveu um artigo criticando um figurão da alta roda – na verdade um borra-botas, mas cheio de contatos, amigo de juízes, promotores, políticos – e no outro dia, quando ia para o trabalho, foi preso por dois agentes da polícia política de Estupidez. Foi humilhado, torturado, ameaçaram-no de todas as maneiras possíveis, inclusive descrevendo minuciosamente o que fariam com a sua filha de dez anos se ele voltasse a se meter onde não era chamado. Ficou horrorizado, vomitou, chorou... Foi solto, mas sua vida mudou muito depois disso. Resolveu aderir de vez à chapa branca, escrevendo e publicando só o que mandavam os assessores de Estupidez. Deixou-se soterrar pela imundície, pela lama, para não ser perseguido, torturado e morto, por amor aos filhos e à esposa.

Fez ele muito bem.

Depois de muitos anos dentro da lama, escrevendo apenas o que lhe mandavam seus superiores, Juca descobriu uma pequena abertura que dava para a superfície, onde se via mais claramente a realidade e o senso crítico se aguçava. Para atingi-la, teve que nadar, porque era uma zona líquida, diferente da lama a que estava acostumado. Chegou à abertura e olhou discretamente para fora, deixando à vista somente os olhos vazios e distantes. Estava perto de uma estrada de terra, numa região que ele sabia ser próxima ao castelo de Estupidez. De repente, ouviu um barulho estranho, virou-se lentamente e se deparou com uma cena terrível: um urubu velho e sujo comendo a carcaça podre de uma anta. Juca sabia o que era aquilo. Levantou um pouco mais a cabeça e sentiu o cheiro... Corrupção. Desfaçatez.

Mas Juca tinha aprendido bem a lição. Pensou no seu emprego, na sua família, no seu futuro e, sem titubeios, mergulhou de novo na lama. E sobre o que tinha acabado de ver, escreveu no jornal: “Eu estive no castelo e testemunhei o jantar. Nossa querida rainha parecia um cisne negro de penas brilhantes, linda, e os líderes comunitários, vestidos a caráter para a ocasião, sentavam-se à mesa com ela, ouvindo sua prestação de contas, a descrição de seus projetos sociais e educacionais, os benefícios que todos iriam ter com o aumento dos impostos (necessário à boa gestão da coisa pública, como ela bem explicou, arrancando aplausos de todos)... Foi tudo muito bonito. A comida parecia excelente!”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 27/02/2014
Código do texto: T4708488
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