A CAMINHO DA POESIA.
UM EXCELENTE TRABALHO QUE PONTUEI E DESTAQUEI EM CAIXA ALTA E FIZ DENSA SUPRESSÃO DIANTE DA EXTENSÃO.
Diante da postura do filósofo Heidegger pergunto eu: A arte é acontecimento ou obra? A obra é produto da arte ou da não-arte que é mero produto do esforço, do ser , da terra? A leitura da arte é simples ou complexa? Tento responder, e o faço com Dubuffet que dizia, quase irmanado à Heidegger que “a arte surge quando menos se espera, em qualquer lugar”, acresço, de qualquer pessoa, em qualquer época, por um simples motivo, ela é ACONTECIMENTO E VERDADE. Celso
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A Caminho da Poesia: Origem e verdade
Fábio Galera - UFRJ[1]
RESUMO
“Considere-se um poema:
A fonte selvagem
Rola e rola seu murmúrio
Pelos dias claros
(Tatsuko)
Tal poema, encontrado em uma antologia de autores dispersos, organizados tematicamente pelas estações do ano, apresenta-se na reunião outonal. Desconsideremos essa organização, a estruturação do haicai, sua métrica, sua rima, inclusive os dados sobre sua autora, Tatsuko; se ela é famosa, as recorrências de sua abordagem temática, se sua obra poética é volumosa ou não, sobre seu engajamento político, desconsideramos as informações que geralmente são levadas em conta por uma investigação literária nos moldes acadêmicos da ciência, para que lhe seja conferida o devido respaldo.
Apesar de tudo isso, o poema fala. Fala com força e serenidade; fala pressuroso em seu jorro. Fala do que é próprio da selva: fonte selvagem. Fonte que irriga a selva: floresta virgem. Fonte selvagem, originária. Fonte que fala. Fonte. Fonte da fala. Nascente de fala. Fonte selvagem da fala. Fala selvagem da fonte. Faculdade de fala, selvagem. Selvageria de fala: fonte. Fala própria da fonte da selva: mata virgem. A fonte fala murmurando, quase em silêncio, sussurrando. Mas, ainda assim, ela fala. A fonte sussurra silenciosa: fala da fonte, a partir da fonte. O poema fala: “A fonte selvagem // Rola e rola seu murmúrio // Pelos dias claros”.
O que cabe dizer sobre o poema, sobre este poema? Vale dizer algo para explicá-lo?
O poema já disse a que veio: trouxe o artifício da fonte e mostrou o som de sua obra, no rolar do rio: seu murmúrio; promoveu a possibilidade de intimidade com a terra úmida no aberto da clareira. Isto foi o que disse o poema? Quem, na verdade falou? O autor? O leitor? O critico? O tradutor? Ou o próprio poema? Uma coisa é inegável: o poema convidou a contemplar a fonte selvagem, que rolando, em seu rolar, faz rolar seu murmúrio pelos dias claros. Não obstante, o homem também fala. Ele sempre fala e, de algum modo, nunca deixa de falar. Geralmente quer falar pelo poema: o que o poema falou exatamente é... o poema queria dizer que... o que o autor disse através do poema foi... No fundo, de quem é a voz que fala no poema?
Para que a poesia ACONTEÇA enquanto verdade na obra, e para que seja possível deixar a obra ser obra, repousando em si mesma, falando por si mesma, deve haver um LUGAR ABERTO. Esse lugar é a abertura (Erschlossenheit) do Dasein[3]. O Dasein é o ente que possui o modo de ser aberto em sua própria abertura. O único ente que possui o modo de ser do Dasein é o homem. Homem aqui significa o ente que possui o modo de ser do Dasein e que se incumbiu da tarefa de escutar poesia. Com isso, nos cabe perguntar sobre as condições da abertura e como se constitui, para que esse lugar de acontecimento seja resguardado em sua originariedade.
A abertura é constituída existencialmente pela disposição (Befindlichkeit), compreensão (Verstehen) e fala (Rede). Esclarecer esses existenciais possui o propósito de tentar indicar o lugar apropriado para o acontecimento da poesia enquanto origem e verdade, para que se libere a poesia em seu vir ao encontro enquanto fala: verdade poética.
O desenvolvimento da explanação que se segue adotou uma postura explicitamente analítica, com o objetivo de resguardar com certa fidelidade a estruturação dos existenciais da abertura. Assim, a sequência lógica da exposição pretende apresentar separadamente os constituintes da abertura. A ideia é num primeiro momento expor a estrutura da abertura, para, posteriormente, recompô-la, enquanto acontecimento.
Esse trabalho pretende pôr em questão a atitude que avalia a literatura numa dimensão que a situa na relação sujeito/objeto, fundamentando este posicionamento a partir do ensaio A Origem da Obra de Arte e outros textos, do filósofo Martin Heidegger. O trabalho se desenvolve a partir de perguntas do senso comum sobre a qualidade de uma obra literária, apresentando questionamentos mais fundamentais e originários para o fenômeno literário.
Caminhando em direção a poesia, intentou-se resguardar o acontecer poético a partir de um haikai.
Palavras-chave: poesia; abertura; origem; verdade; acontecimento.
ABSTRACT
This work pretends to question the attitude that evaluates the literature in a dimension that is the subject/object relationship, stating this position from the essay The Origin of the Work of Art and other texts, of the philosopher Martin Heidegger. The work develops from the common sense questions about the quality of a literary work, presenting more fundamental and originating questions to the literary phenomenon. Walking toward poetry, the work pretends to safeguard the poetic event from a haiku.
Keywords: poetry; openness; originating; truth; event.
1. O leitor desavisado, ao iniciar a leitura da obra de Heidegger, A origem da obra de arte, naturalmente, tenderá previamente a ler o ensaio esperando encontrar um princípio, um critério que poderá nortear o esclarecimento do fenômeno da arte, sua origem. Nisto, considerando o lugar da literatura como obra de arte, poderíamos pensar inicialmente que o ensaio é uma contribuição do autor que poderá nos ajudar a nortear a decisão sobre o que vem a ser a obra de arte literária. O acréscimo do adjetivo literária não fará diferença, desde que a obra de arte seja proveniente da arte. Nesta perspectiva, basta convocar alguns termos utilizados por Heidegger para que possamos ancorar seu pensamento em mais um esforço por domesticar a manifestação da arte; mais uma estética possível dentre muitas outras. O pensamento de Heidegger assim torna-se teoria. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade (Sich-ins-Werk-Setzen der Wahrheit). Se a arte é o pôr-se-em-obra da verdade, está aí o critério que irá nos ajudar a decidir sobre o que é ou não próprio da arte. Isto nos dará a autoridade crítica de decidir o que é a arte e o que é uma obra de arte. A obra será tanto uma obra de arte desde que esteja de acordo com este princípio: uma obra específica põe em obra a verdade. Não questionaremos, por ora, o que viria a ser esse por em obra, nem o que será decidido por verdade. Mas é inegável que estamos diante de um princípio estético.
Já disse Platão, em sua República, que a poesia deve imitar a “coragem, sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie” (PLATÃO, 2002, 395a, p. 86), inclusive a verdade. Quando não proceder desta forma, “o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte [da alma] irracional, [...] que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade”. (Ibidem, 605a, p. 304).
Comparando-se Platão e Heidegger, neste sentido, ambos estariam falando da verdade como critério artístico. E assim, Heidegger e Platão seriam contemporâneos de uma mesma posição: a arte enquanto estética, a arte enquanto uma definição apriorística.
No entanto, deve-se, a este respeito, ressaltar a nota contida no Der Ursprung des Kunstwerks, que, sobre o pôr-se-em-obra da verdade e a verdade, indica: A VERDADE É A VERDADE DO ACONTECIMENTO! (Wahrheit aus Ereignis!) (HEIDEGGER, 1977, p. 25). O que se dá na arte, então é o acontecimento da verdade. Isto nos impõe uma não-sistematização da verdade, pois na verdade, enquanto acontecimento, está contida, também, a não-verdade. Esta verdade de que fala Heidegger não é a verdade da correção e adequação platônica. A perspectiva de Heidegger é fundamentalmente outra, diversa da perspectiva de Platão. Assim, para conseguirmos atender aos apelos contidos no ensaio será necessária uma outra postura.
Quando o estudante de letras se pergunta sobre o caráter artístico de uma obra literária, ou seja, quando se pergunta se tal obra é ou não uma obra de arte, ele deseja encontrar uma resposta. Quando lê um poema deseja saber o quantum de arte está presente naquele poema. QUER PODER APRENDE A DECIDIR se esta ou aquela obra é ou não uma obra de arte, ou melhor dizendo, uma obra literária. Quer saber discernir a fronteira entre o literário e o não-literário. Isto, nada mais é do que uma necessidade de controlar a manifestação da arte, assim como tentou empreender Platão.
Apesar dessa postura de controle, que veio sendo tomada até os dias de hoje, qual seja a mesma postura tomada por Platão, diante do fenômeno da arte, Heidegger nos adverte em seu Posfácio que o caminho tomado no ensaio é bem outro: As considerações precedentes concernem ao enigma da arte, o enigma que a arte em si mesma é.
Longe de nós a pretensão de resolver tal enigma. A tarefa consiste em ver o enigma. (Idem, 1999,p. 65).
Cabe então, nesta caminhada em direção ao enigma da arte, tentar esclarecer em que medida e de que maneira aquilo que poderia vir a nortear o fenômeno literário, a saber, o pôr-se-em-obra da verdade, poderá nos ajudar a compreender a literatura.
2. Para podermos nos situar no caminho sugerido, em direção ao enigma da arte, algumas advertências precisam ser observadas para não repetirmos a mesma velha posição em relação à arte.
Primeiramente devemos afirmar categoricamente que não cabe questionar se esta ou aquela obra é ou não uma obra de arte. Esta não é a pergunta que deve ser feita.
Quando se pergunta se tal obra é uma obra de arte, se tal texto é verdadeira literatura, a resposta que se espera É UMA RESPOSTA LÓGICA, que não possui a capacidade de comportar o acontecimento da arte. Aristóteles, no texto das Categorias, onde trata da predicação, esclarece sobre a conexão entre os entes, sobre as possíveis relações que pode haver entre sujeito e predicado, nas proposições. Ao propor tal pergunta, se tal obra é uma obra de arte, pretende-se com esta pergunta saber se o predicado da proposição, uma obra de arte (a qualidade do que é artístico), está na substância, a obra, como algo que está em algo subjacente. Pretende-se saber se a qualidade do que é artístico está na obra como algo subjacente e ainda se essa qualidade pode ser afirmada como algo subjacente à obra. Esta é
uma proposição que para ser afirmada deve ser devidamente analisada.
Para podermos dizer que a arte está na obra como algo subjacente à própria obra, seria necessário dizer que a arte só é arte na obra. Isto até poderia ser dito, pois a arte só é arte enquanto é uma obra de arte. Note-se que esta afirmação esta tratando da arte como uma categoria e ainda nada foi esclarecido sobre o que vem a ser a arte. Deixemos, então, provisoriamente, a afirmação: a arte está na obra como algo subjacente à própria obra, ou seja, esta obra é uma obra de arte, esta obra específica tem arte, é artística. Se quer saber se tal obra é uma obra de arte.
Heidegger veta esta pergunta com sua afirmação no Suplemento de A origem da obra de arte: “O que seja a arte é das perguntas a que nenhuma resposta se pode dar. E o que parece ser uma resposta é apenas um sinal que guia a pergunta (cf. as primeiras páginas do Posfácio).” (Ibidem, p. 72).
3. O que poderá ser considerado como literatura, então? Qualquer texto será um texto literário? Ao falar de literatura entenda-se obra de arte, e aí estarão ainda incluídos todos os gêneros literários. Desde que aconteça na obra o pôr-se-em-obra da verdade enquanto um acontecimento, teremos obra de arte, e, assim, literatura. Isto implica um total descontrole sobre o fenômeno literário. Mas por que deve haver controle nesta relação?
Antes de haver controle, o que há é o acontecimento. Conforme afirma Heidegger:
“A arte não se toma como domínio especial da realização cultural, nem como uma das manifestações do espírito; pertence ao Acontecimento (Ereignis), a partir do qual se determina somente o “sentido do ser” (cf. Ser e tempo).” (Ibidem, p. 72).
Note-se que a pergunta sobre o que vem a ser literatura radica na mesma perspectiva da pergunta sobre o caráter artístico de uma tal obra. Ambas levam ao mesmo labirinto; uma se sustenta na outra. Isto revela a impropriedade do desejo por definir o estatuto literário, nesta dimensão de correção e controle. Aquela pergunta posta no item anterior tentou decidir sobre a literatura através de sua presença, através da presença de uma obra específica; esta pergunta, sobre o que vem a ser literatura, tende a decidir e delimitar a literatura pela ausência da obra literária. Aquele tenta achar na obra algo de artístico, este tenta construir o lugar da obra literária.
Nesta direção não há saída. Sendo assim, fica patente a inadequação em se colocar a questão sobre o que é literatura enquanto sujeito (literatura é...) e enquanto objeto (... é literatura) da proposição. A este respeito, sobre tratar a arte nesta dimensão sujeito/objeto, fala Heidegger no Suplemento do ensaio A origem da obra de arte, esclarecendo sobre a ambiguidade essencial contida na delimitação da arte como o pôr-em-obra da verdade:
“Porque verdade é, por um lado, “sujeito” e, por outro, “objeto”. Ambas as caracterizações são “inadequadas”. Se a verdade é o “sujeito”, então, a determinação “por-em-obra-da-verdade” quer dizer: pôr-se-em-obra-da-verdade (cf. p. 57 e 27). A arte é assim pensada a partir do acontecimento (Ereignis). Mas o ser é interpelação ao homem e não sem este. Por isso, a arte é simultaneamente determinada como “pôr-em-obra-da-verdade” e verdade é agora “objeto”: a arte é o trabalho humano de criação e de salvaguarda.” (Ibidem, p. 72)
Assim, em relação à literatura, entendendo a verdade como sujeito, estaríamos considerando que a literatura é o pôr-se-em-obra-da-verdade: isto significa que a verdade põe-se em obra enquanto literatura e a verdade e, consequentemente a literatura, seriam algo sem o homem. Seria o mesmo que dizer que as obras literárias brotam da terra e nas árvores, sem a intervenção humana. Por outro lado, considerar a verdade enquanto objeto, também nos posiciona num lugar fora do mundo: esta perspectiva nos faz acreditar que a arte e a literatura nos são inteiramente dependentes, o que não corresponde ao real. Nós SOMOS UM MEIO PARA A MANIFESTAÇÃO DISSO que estamos intentando compreender, a saber a arte literária.
Qual é a questão, pois, que deve ser colocada, em relação à literatura? A arte, inclusive a arte literária, SE É QUE PODEMOS DELIMITAR A ARTE DESTA FORMA, deve ser pensada segundo o acontecimento da verdade. O que é próprio para ser pensado, enquanto questão, no âmbito da literatura deve ser o acontecimento da verdade. O que é digno de se pôr em questão é: COMO ACONTECE A VERDADE POÉTICA EM DETRMINADA OBRA? Como ocorre a verdade nesta obra? Como ocorre a verdade naquela obra? Na dimensão que estabelece a relação sujeito/objeto, é sempre o homem que está determinando a arte: quando não está exercendo a função de sujeito, está exercendo a função de objeto. O caráter de subjetividade está essencialmente presente nesta relação. A questão deve ser posta e entendida devidamente fora do âmbito da relação sujeito/objeto.
Por esse motivo é que Heidegger nos alerta quanto a possibilidade da dissimulação da relação entre o ser e a essência do homem, ao cair na armadilha de decidir por uma ou outra opção oferecidas pela dualidade sujeito/objeto. Aliás todo seu esforço intelectual, em Ser e Tempo e em toda a sua obra, foi dedicado à iluminação desse problema. Por esse motivo é que o autor sugere a substituição da expressão pôr-em-obra da verdade, em 1960, por VERDADE DO ACONTECIMENTO, mencionada anteriormente, para dirimir ainda mais a força dessa armadilha.
4. Não cabendo nem a pergunta sobre o caráter artístico de uma determinada obra, nem a pergunta sobre o que vem a ser a literatura, qual será, então, a atitude a ser tomada por aquele que se aproxima de uma obra literária? Deverá ele se perguntar sobre como acontece a verdade poética na obra. Mas como deverá ser o dispor-se a tal questão? Pode, pois, o homem DISPOR DEUM MÉTODO, caminho seguro, para alcançar a verdade da obra poética? De que maneira, como se deve procurá-la? Antes de mais nada, devemos tentar desenvolver a questão fundamental sobre como acontece a verdade poética na obra.
Posteriormente, tentaremos desenvolver o outro questionamento fundamental: como é possível chegar a esta verdade. Os outros questionamentos que porventura surgirem, serão consequentes a estes dois. à primeira pergunta, Heidegger já respondeu de forma bem direta: “Respondemos: acontece em raros modos essenciais. Um dos modos como a verdade acontece é o ser-obra da obra. Ao instituir um mundo e ao produzir a terra, a obra é o travar desse combate no qual se disputa a desocultação do ente na sua totalidade, a verdade.” (Ibidem, p. 44)
O modo próprio da obra ser uma obra de arte faz acontecer a verdade. A obra só chega a ser obra enquanto repousa em si mesma. Isto significa que, quando interpretamos a obra através dos conceitos habituais de coisa[2] – coisa como suporte de características, unidade de uma multiplicidade de sensações ou como matéria enformada – “constrangemo-la segundo uma apreensão prévia, através da qual barramos o acesso ao ser-obra-da-obra”(Ibidem, p. 31), posto que não deixamos a obra acontecer. Isto é algo que merece extrema relevância, no que concerne a discussão desenvolvida por Heidegger sobre a obra de arte.
As reflexões sobre a obra enquanto coisa figuram no início do ensaio para que, desde logo, esta interpretação da obra seja colocada de lado.
Assim, devemos deixar de lado aquele modo de lidar com a literatura, que a compreende como suporte de características, no qual buscamos encontrar aspectos que foram previamente definidos como literários: a teoria forçando a obra. E também aquela valorização da obra como uma unidade de efeitos estéticos, INTENCIONALMENTE PRODUZIDOS.
Ou ainda aquela aproximação da obra que pretende encontrar em sua forma um conteúdo, uma mensagem profunda de seu criador.
O que é preciso fazer, então, é deixar a obra no seu “puro estar-em-si-mesma (reine Insichstehen). A obra estará em si mesma quando seus traços essenciais estiverem manifestos. Os dois traços essenciais da obra, destacados por Heidegger são a “instituição de um mundo e a produção da terra” (Ibidem, p. 38). É nisto que se constitui o ser-obra da obra de arte. A obra enquanto instala um mundo “abre um mundo e mantém-no numa permanência que domina.” (Ibidem, p.34). A instalação de mundo a partir do obrar da obra não significa um mero colocar algo em algo, como se instala um quadro na parede ou um programa num computador, segundo a vontade humana. A instalação de mundo é um consagrar e glorificar aquilo que é instalado, a saber, um mundo.
O mundo é o sempre inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser.
(Ibidem, p.35)
Terra é aquilo que concede o mundificar do mundo, possibilita a clareira. Não é propriamente o bloco de granito, enquanto matéria-prima, que concede o vir a ser da estátua. Mas sim, aquilo que oferece ao homem a possibilidade de retratar- se ao ser, enquanto humano, ao esculpir. Heidegger nos oferece uma maravilhosa visão da determinação do que vem a ser a manifestação da Terra (Erde):
Ali de pé repousa o edifício sobre o chão de rocha. Este repousar (Aufruhen) da obra faz sobressair do rochedo o obscuro do seu suporte maciço e, todavia, não forçado a nada. Ali de pé, a obra arquitetônica resiste à tempestade que se abate com toda a violência, sendo ela quem mostra a própria tempestade na sua força. O brilho e a luz da sua pedra, que sobressaem graças apenas à mercê do Sol, são o que põe em evidência a claridade do dia, a imensidade do céu, a treva da noite.
O seu seguro erguer-se torna assim visível o espaço invisível do ar. A imperturbabilidade da obra contrasta com a ondulação das vagas do mar e faz aparecer, a partir da quietude que é a sua, como ele está bravo. A árvore, a erva, a águia e o touro, a serpente e a cigarra adquirem uma saliência da sua forma, e desse modo aparecem como o que são. (Ibidem, p. 33)
Geralmente, o que se entende por terra entende-se como aquilo que o homem controla e manipula ao seu bel prazer. O homem habitualmente não concebe a terra como uma doação da phýsis. A terra, tal como o homem trata em seu cotidiano, é objeto do seu desejo e da sua ação. Nunca é entendida como concessão, doação, guarida para o seu fundar. Isto quer dizer que não há respeito pela terra e sim dominação e controle. O homem só se dá conta da força que a terra possui, quando a phýsis faz brotar sua potência. É o caso das catástrofes. O homem só se dá conta que não domina a terra quando ela se abre um pouco – e nem precisa abrir-se muito para isto acontecer. Porque a terra, em sua essência é “o que se fecha em si (Sich-Verschliessende). Pro-duzir (her-stellen) a terra significa: trazê-la ao aberto como o que em si se fecha.” (Ibidem, p. 37)
Vimos até aqui que o ser-obra-da-obra instala mundo e produz terra. Mas, o instalar mundo e o produzir terra da obra estão, um em relação ao outro, em combate.
O mundo é a abertura que se abre dos vastos caminhos das decisões simples e decisivas no destino de um povo histórico. A terra é o ressair forçado a nada do que constantemente se fecha e, dessa forma, dá guarida.
É desta maneira que terra e mundo estão em combate na obra.
Cabe agora uma parada para refletir sobre o que foi dito até então.”
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