Castigo depois da aula

CASTIGO DEPOIS DA AULA
Miguel Carqueija

Ficar de castigo depois da aula é um clichê clássico, aproveitado até em filme de terror (assisti um nessa linha, e devem haver outros) e em episódios da Sailor Moon.
Na minha vida tive uma experiência pessoal bastante desagradável e que marcou minha lembrança, até hoje bem nítida apesar das décadas percorridas.
Eu tinha onze ou doze anos e estudava no Colégio São José, dos Irmãos Maristas, externato sito no início da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Rio de Janeiro. A rua era bastante extensa, chegando até ao Grajaú após atravessar o Andaraí.
Uma tarde o coordenador de nossa classe, Irmão Borges, me colocou de castigo depois da aula, já não me lembro mais o motivo. Provavelmente uma briga de alunos, pois ainda me lembro que havia um colega na punição. Hoje eu vejo o Irmão Borges como um homem severo porém justo; naquele tempo minha mentalidade de criança não abarcava o suficiente essas coisas.
Quando afinal fui liberado ainda era dia, e felizmente não chovia, mas a minha situação não era das melhores. O ônibus escolar saíra havia muito. Não adiantava telefonar, pois se fosse o caso eu poderia pedir para usar o aparelho da secretaria. Mas meus pais não dispunham de telefone; naquele tempo isso não era tão ridiculamente fácil como agora e, claro, não existiam celulares.
Só me restava uma opção: armar-me de coragem e sair andando por aquela imensa Rua Barão de Mesquita, até chegar à rua transversal que levaria à outra, paralela, onde morávamos. Hoje, de fato, a distãncia não me parece mais tão grande; naquela época, porém, era assustadora. Eu era apenas uma criança, não um pré-adolescente como hoje se diz. Creio que nem se usava essa expressão. Tinha sido criado com pouca liberdade e palmilhar aquela distância era para mim uma péssima experiência. E o que é pior, ao chegar encontrei minha mãe aflitíssima pela minha demora e falta de notícias. Meu pai de nada sabia, pois não chegara ainda do trabalho.
É claro que o motorista do ônibus não passara lá para avisar da minha ausência. Isso não fazia parte das suas obrigações.
Com certeza mamãe telefonou no dia seguinte, reclamando (claro, de algum aparelho público), pois ao chegar fui chamado pelo Irmão Borges que, ao que parece mais zangado que na véspera, me questionou: “Por que você não me disse que não tinha dinheiro para a passagem?”
A cena deve ter sido patética. Recordo que olhei para ele e nada disse; de fato eu não sabia o que responder.
Papai e mamãe eram pobres e fruto de uma época em que crianças eram por demais consideradas crianças, seres indefesos; como eu levava merenda e dispunha de transporte para me conduzir ao colégio e dele retornar, não me davam dinheiro para levar. Eu ia estudar sem um centavo no bolso. Com certeza, não previram a possibilidade de perder o ônibus e ter de vir a pé, por falta de dinheiro para o bonde. Sim, naquele tempo a gente ainda viajava de bonde...
Mas o que eu podia fazer? A mentalidade de uma criança não é facilmente compreensível para os adultos. Como iria o Irmão Borges entender que eu não podia pedir dinheiro para a passagem? Acho que isso nem me passou pela cabeça. Tudo o que eu sabia é que precisava voltar para casa e, não tendo a passagem, teria que ir a pé, fosse qual fosse a distância. Felizmente não havia possibilidade de me perder, por mais bobo que eu fosse; não era tão criança assim e bastava caminhar pela Barão de Mesquita até chegar às esquinas bem conhecidas.
Se eu fosse pedir aquele dinheiro, das duas uma: ou pedia antes, e ele talvez preferisse me liberar para o ônibus do colégio, o que soaria como uma chantagem; ou pedia depois, já com o ônibus ido, e soaria como uma vingança. Não, era melhor aceitar tudo com humildade, silenciar e ir para casa. Não que eu pensasse em termos de humildade – certamente nem me lembrei dessa palavra – minha reação foi instintivamente humilde, e até hoje acredito que agi então da forma mais correta. O que eu não deveria ter feito é dado motivos para o castigo.
Infelizmente nem sempre é possível consertar de todo as coisas nesse mundo. Se a gente disser a um desafeto: “Eu te perdôo”, ele se sentirá insultado. E se a gente agir com discrição, aceitando as coisas, pode provocar irritação. Será que o Irmão Borges achou que eu silenciara de propósito, para deixá-lo mal com meus pais? Só Deus sabe.


Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2014.


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