INTERVALO.
Era alta madrugada, a favela dormia mais uma vez seu sono intranquilo. Pelas vielas de barro mal iluminadas, um homem caminhava apressado. A ponta de seu cigarro desenhava pequenos rabiscos de brasa na lousa de breu da noite. Os últimos trabalhadores chegavam em habituais passos elétricos, ligados ao perigoso fio de alta tensão no interior da favela. O Latido em coro dos cães de rua unia-se a um elo extenso de maus presságios, um adereço extra junto ao vazio absoluto de veículos e almas. A boca, o baile, as biroscas fechadas imprimiam a comunidade uma fúnebre estética de cidade fantasma, onde irremediavelmente os espíritos de bandidos mortos já vagavam, bruxuleando dentro do fogo cruzado, pulando sobre os muros e cercas das casas velhas a reclamar seu sangue sem medo. O som do ultimo tiro fundiu-se ao som primeiro trem. Uma sinfonia estrondosa para acordar a madrugada distraída, esquecida de ir-se embora levando consigo seus terríveis assombros, sua deselegante combinação de cor vermelho morto, derramado sobre o marrom opaco do barro do chão. As rodas do trem sobre os trilhos criavam um ruído compassado. O roçar ferro com ferro despertava sobre muitos moradores uma ponta feliz de esperança. A vida sobrevivera a mais uma noite infernal na lava quente escorrida do olho do vulcão, no coração acelerado da favelada. Na vitrola elétrica da birosca agora entre aberta, ouvia-se um samba velho de Bezerra da Silva, era um sinal claro de que o vulcão adormecera leve em seu sono traiçoeiro. Descansando. Refazendo-se para uma outra repentina e irremediável erupção.