Febre Emocional
Desde criança, sempre tive uma "saúde de ferro", como se costumava dizer. Invejava quando meus irmãos adoeciam, porquê mereciam uma atenção especial da minha mãe. Bem que eu inventava uma dor aqui, outra ali, mas era facilmente desmascarada. Não me lembro de adoecer. Das doenças de criança, tive algumas, como a catapora. Mas, ao mesmo tempo que todos os meus irmãos, sem nenhuma deferência.
Contudo, lembro de ter tido algumas febres rápidas, diagnosticadas pelo médico como emocional. Era a resposta do meu organismo a uma grande tristeza ou decepção. Essas febres pontuaram alguns fatos marcantes na minha vida.
Foi assim quando, muito jovem, meu pai conseguiu através de um colega de farda, um encontro com o meu poeta favorito. Depois de me receber no escritório, no centro da cidade, e autografar um livro, ele me convidou pra descer com ele pra tomar um suco - e me deu uma "cantada". A decepção foi tanta, que eu cheguei em casa ardendo de febre.
Quando o professor Darcy Ribeiro trouxe à Educação a proposta dos
Centros Integrados de Educação Pública, me deixei seduzir por suas ideias, e optei por trabalhar em horário integral num CIEP - batizado pelo povo como "Brizolão", numa alusão ao político Leonel Brizola.
A clientela era oriunda de uma favela próxima - a pior possível em matéria de respeito e educação. Não tinha grandes problemas com os meus alunos, que tinham seis ou sete anos de idade, mas os alunos maiores eram incontroláveis. Eles dividiam o fruto do roubo na frente das professoras, que eram muitas vezes agredidas por eles. Faziam de tudo durante as oito horas que ficavam na escola, menos estudar. Fumavam maconha, vendiam ingressos de bailes funks, entravam e saíam da sala quando bem entendiam, ameaçavam as merendeiras quando negavam repetição de comida. Estupros e relações consentidas aconteciam nos banheiros diariamente. As brigas eram tão violentas, que só o policial residente conseguia separar, às vezes tendo que sacar a arma, que era só o que eles respeitavam.
Um dia, um de meus aluninhos teve a bola "confiscada" por um grupo desses elementos, e eu fui pedir que eles a devolvessem. Enquanto eu argumentava, eles continuavam jogando a bola uns para os outros, com respostas debochadas. Quando vi que seria inútil continuar tentando, pedi ao meu aluno que chamasse o guarda. Um deles, o que parecia ser o líder da gang, me deu uma bolada, e me disse o que eu deveria fazer com a bola. Nesse dia, queimava de febre quando deixei a escola.
Por quê estou lembrando disso agora? Ontem, uma pessoa muito querida embarcou para a Europa, onde deverá ficar por alguns meses. E, esta manhã, eu acordei febril. Minha tristeza ainda pode ser mensurada por essa reação biológica - é o coração que adoece, não o corpo! Depois de tantos anos, tenho uma febre emocional. Eu, ainda emotiva demais, previsível demais...