Sou canhoto

Acordei com o pé esquerdo. Sim, porque hei de negar algo que me é tão fugaz e banal? Reflito bastante sobre essas crendices populares que cercam o imaginário de todos nós que obtemos nossa cultura de modo tão natural, algumas aceito, outras desconfio, mas... Deixo meu pé atrás quando não há a razão. Enfim, me causa estranheza essa mania de julgarmos todo um dia pelo primeiro passo, mas há razão nesse pensamento, e lhe dou os créditos merecidos.

É fácil perceber a influência de nosso acordar para todo o desenrolar do dia, quem de nós nunca sentiu um resfriado que estava por vir quando aquele colocar os pés no chão se tornou fardo pesado demais ou ainda quando você se sente atropelado pelo mais pesado dos caminhões. Crio a teoria de que nosso acordar conduz uma síntese de que será nosso dia, ou ainda um dom que ganhamos e ainda não reconhecemos que é o da clarividência de um futuro próximo, futuro esse ao qual poderíamos enfrentar com menos amargura aquilo que vem. Tiro por mim que, muitas vezes, não acordo, mas simplesmente abro olhos num sinal de estar vivo, pois não faço sinapses, não ouço poluição e não sinto os pés... nem o direito.

O acordar tende a ser algo que me fascina, mas, ao mesmo tempo, um recado irônico de Deus, relembrando que somos humanos e que devemos voltar ao que realmente nos reconecta ao sagrado, a dura realidade. Portanto, o sono seria aquele lugar em que reencontraríamos tudo que nos falta, nos encheríamos de esperança, prazeres, devaneios e depois somos chamados a voltar para uma realidade torpe, da qual, muitas vezes, não somos capazes de acordar, e que o medo de dormir para sempre é encarado como anormal... Como seria bom vivermos sonhando, ou ainda, morar em lugares em que acordar fosse melhor que sonhar... Acharíamos a ambrosia terrestre.

As maneiras como acordamos mostram o que desempenharemos em dias banais, dias em que os pés esquerdos prevalecem, são os dias em que preferimos não sair da cama, agarramos nos travesseiros de penas angelicais e nos cobertores de ilusões, mas somos acordados com alarde, correria, o tempo urge... O abrir de pálpebras requer uma adaptação, tanto que as fechamos quando há muita luz, queremos o escuro mesmo, a falta de invenções, queremos o simples, a inércia, o continuar dormindo. As mães até que atenuam o processo patético, mas não tem jeito, quando levantamos com os dois pés sinistros aquela centelha de luz a mais nos irrita, ou a falta de uma meia vermelha dos Rolling Stones é percebida.

De modo contrário também podemos mostrar uma vontade de acordar, em que o abrir dos olhos vem acompanhado de um sorriso ou de uma risada, quiçá uma oração matinal agradecendo por abrir os olhos. Nesses dias age-se diferente, abrem-se os pulmões, as lufadas de ar servem mesmo para te empurrar e aquele cisco no olho é sinal de que a de se cuidar dos olhos, e só... Colocar os pés no chão é muito difícil, é se abster do sono, é se debruçar sobre a vida, é conviver com mais pés esquerdos que direitos, é querer a ousadia de rumar ao sono eterno, e ser covarde demais para escolher o que se quer.

Ainda acho Deus brincalhão, dá acesso à tecnologia, ciência se mistura com humanidade, e quando essa chama deve se estar alerta, sentinela do tempo, inexoravelmente humilhante do que é passado. E tenta-se fugir, seja por segundos, horas, as vezes, dias, mas um dia cessamos de buscar um isolamento, e vemos que uma boa deserta ilha é tentar sonhar mais e acordar menos, forçar o nascimento de dois pés direitos quando tudo que te oferecem são sapatos apertados e sinistros...

Gabriel Amorim 22/02/2014