Deus protege os irresponsáveis
Talvez aquela frase, escrita num pedacinho de papel junto a um endereço eletrônico por uma pequena senhora simpática e alegre, tenha justificado para mim um sem número de situações potencialmente perigosas das quais saí ilesa. Aquela mulher, de inacreditáveis 75 anos, acabara de me explicar também porque ninguém acreditava de imediato em minha idade real. “A irresponsabilidade faz isso também, nos torna joviais”, ela disse, ante minha total incredulidade à declaração de sua idade já avançada. Para mim, ela era um pouco mais que uma mulher madura como eu. Será que, de fato, ela havia dado contornos de realidade à pergunta que eu acabara de ouvir de outra pessoa – “Vocês são irmãs?” , referindo-se a mim e à minha filha -, pergunta essa que interpretei como um lisonjeiro, porém exagerado, elogio?
O fato é que pensei muito sobre a frase escrita com uma caligrafia professoral no pequeno bilhete que guardei em minha bolsa, motivada por outra bolsa, a dela própria: havia deixado-a, aberta, esquecida num banco atrás de si, a alguns passos de distância. Foi alertada com preocupação sobre o fato, e num movimento jovial, porém sem pressa, agarrou-a e proferiu a frase que, mais tarde, anotou junto a seu endereço para que delas – pessoa e frase - eu não me esquecesse.
E como poderia? Num repente foi-me explicada a genérica “sorte” que sempre me fôra atribuída. Lembrei-me de imediato das inúmeras vezes em que recuperei carteira, chave, cartão de crédito, agendas e outros objetos pessoais deixados nos locais mais impróprios e lá continuando intactos à espera de que eu fosse buscá-los. Ou então caridosamente guardados e devolvidos. Listei em minhas memórias as tantas vezes que, em tendo desperdiçado tempo de trabalho em outras atividades mais interessantes, não consegui cumprir prazos, e inesperadamente tinha as reuniões para entrega de trabalho postergadas pelos próprios clientes. Enumerei mentalmente as vezes que, moradora da imensa e violenta metrópole, passeava de carro, vidros abertos, embasbacada com um ou outro detalhe urbano interessante, expondo-me à ação de ladrões, sequestradores e quetais, e constatei que nunca havia sido abordada. Sorte ou efetiva proteção divina? Três toques na madeira, por via das dúvidas.
Mas essa irresponsabilidade “light” não tem relação com a prepotência. Não é que nós, os pequenos irresponsáveis, não acreditemos que os perigos existam, ou nos coloquemos acima do bem e do mal, certos de que nada irá nos acontecer. É nossa fé inabalável que comove os deuses, fazendo-os compadecer-se sinceramente daqueles seres ingênuos que nada sabem das maldades do mundo, ao menos nesses instantes fugidios em que se desligam da realidade. Assim, estendem seus braços (auras, asas, energias, mantos, mãos) sobre nós, jurando que é a última vez. Porém nunca o é, pois essa atitude paternalista dos nossos protetores não nos ensina de fato. Justamente porque, diferentemente dos arrogantes e prepotentes irresponsáveis “hardcore”, não dirigimos embriagados, não fazemos sexo sem proteção, não andamos armados, não compramos brigas inúteis, não deixamos de dialogar à exaustão com nossos filhos. Enfim, não fazemos roleta russa com nossas vidas: apenas nos esquecemos momentaneamente, em nosso poético devaneio, da vida real - e assim arriscamos coisas banais, como chaves e carteiras.
Deus protege os irresponsáveis. Essa tese instantânea e perigosa da pequena senhora, gravada a caneta num pedacinho de papel, seria facilmente refutável por inúmeros argumentos contrários. Mas para mim e minha fé, bastam. Evidentemente, com restrições: deve ser compreendida como uma explicação para bem sucedidas vivências anteriores, e nunca como mote para futuras atitudes. Afinal, podemos ser irresponsáveis, mas não somos loucos.