O dia da redenção

24 de agosto do ano de dois mil e GALO

Sabe aqueles dias em você acorda com uma certeza absoluta de que o mundo é perfeito, todas as pessoas são felizes, você e as pessoas que te importam são imortais, a Angelia Jolie te ama, Renato Russo ressuscitou, por engano, depositaram cem mil na sua conta e não querem devolução, seus avós renascerão feito fênix?

Era assim que me sentia, andando garboso pelas ruas, camisa do GALO sob a do trabalho, beijos no escudo de 5 em 5 minutos, e uma vontade doida de que o tempo voasse e eu pudesse gritar aos quatro ventos todos os gritos que tinha na garganta.

Sim, eu tinha certeza. Plena. Seriam dois a zero no tempo normal e vitória na prorrogação. Galo campeão e ponto.

O tempo, congelado, parado, arrastou-se até a hora mágica. Cogitei ver o jogo num bar, com parceiros de confraria. Pensei em ir a Brás Pires, juntar-se aos meus irmãos... Fiquei em casa! Tinha compromisso com o nosso ritual. Meu filho e eu recapitulamos o lugar do sofá que sentamos nas quartas e semi, acertamos a posição da mesa de centro, colocamos a TV no volume da hora em que São Vitor realizou o maior milagre da humanidade... Naquele dia, recusamo-nos terminantemente a falar com quaisquer cruzeirenses, inclusive meu pai, pra não atrair maus fluidos. Supersticiosos não somos, mas não agüentaria carregar qualquer indício de culpa por algum castigo dos deuses.

Cinco minutos para o jogo. Ligação do meu irmão. O mesmo horário, as mesmas palavras. Um grito de galo no final. Era o ritual. A bola vai rolar. Ligação da minha mãe: “coloquei seu pai pra dormir, pra não dar azar”.

De repente o tempo dispara. O GALO estacionado em campo. Os guaranis lépidos e fagueiros. São Vítor desfilando sua cota de milagres. Nosso ataque inoperante... 45 minutos passam em 5.

Intervalo. Cabeça baixa, calado, ateu que sou, rezo pra São R10, Menino Bernard, Jô... Apenas São Vítor me escuta.

Ligação da minha irmã: Não agüento mais. Vou tentar dormir. Tá chorando. Digo: fica aí, vai dar certo. Não saia.

Começa o segundo tempo.

Cruzamento da direita, Pitoni chuta a orelha da bola, Jô... Quero gritar, pular. Contenho-me. Falta muito. Minha casa em festa. Fico calado, nem comemoro. Não posso atrair azar.

Minha irmã de novo. Gritando. Repito: não saia. Vai dar certo

O tempo voa. A certeza vai dando lugar ao medo.

Ferreira, contra-ataque. São Vitor atabalhoado, fintado. Ferreira prepara-se, ajeita-se. Sem goleiro. Vai chutar. Fecho os olhos. Espero o grito do narrador... Deus, último homem, correndo risco de levar vermelho, derruba-o. Ah, a esperança renasce.

O tempo continua voando. Seria Guilherme o autor do gol? Ainda não. 40 minutos. Seria outro quase?

Ronaldinho, pra Bernard, passa pelo zagueiro. Falta. Expulsão. R10 bate e... não é gol.

43 minutos. Bola na esquerda, cruzamento. Leo Silva na área. Centroavante. Cai. Não é penalty... Sobra. Bernard. Novo cruzamento. Leo sobe. Cabeceia. A bola sobe. Para no ar. Vai sair por cima. Fica na dúvida. Não quer cair. O tempo congela. A bola desce. Caprichosa. É gooooollll.O coração quase para. E dispara. Um grito doido pra sair da garganta. Contenho-o ainda. Falta um.

Vem a prorrogação. Nada. Penaltys.

Ligação. É meu sobrinho: Tio, a minha mãe ta passando mal. Quer sair de frente da TV. Digo: não deixa.

Era questão de tempo: seríamos campeões.

E fomos: Agora sim. Grito por 1980, por 1981. Xingo o José Rato, o Aragão, o Simon, o Márcio Resende. Grito o nome do Rei, do Éder, do Cerezo, Luizinho e Marques.

Meu filho e eu pegamos o carro. Saímos a acordar todo mundo. Nunca paguei multas de transito tão satisfeito assim. Precisávamos abraçar nossa família... E assim o fizemos.

ERA O DIA DA NOSSA REDENÇÃO.