Sou imbecil
Não há alegria por trás do sorriso que esboço escondido por uma taça de vinho, sorrio por pura imbecilidade. Sou imbecil por não conseguir deixar de pensar na mulher que levou consigo meu sorriso sincero e a última lasca do meu coração; por acreditar que se pode confiar; por ainda ter um resquício de esperança de um dia acordar com o peito leve; por buscar bondade num mundo roto e podre; por não ter-me atirado num precipício de braços abertos, abraçando o nada.
A mulher em minha frente ignora a falsidade de meu sorrir e se acende como um holofote com a lisonja mentirosa que digo. Olho para ela, cabelo dum castanho claro e bonito, o nariz fino, os olhos cor de chocolate, os dentes um pouco tortos, uma marca de nascença na bochecha, os braços compridos que terminam em dedos longos cheios de anéis, o colar exagerado repousa sobre seios fartos comprimidos por um decote convidativo. “Não é você que quero”, penso rindo de algo que ela disse, “Não mesmo”, acaricio levemente uma de suas mãos, os dedos parecem gravetos secos, toco um de seus anéis e elogio sua beleza, contente passa a contar-me a história da joia, finjo escutar a ladainha. Sou imbecil por tentar buscar conforto na carne desta criatura.
Um garçom com ar afetado põe-se ao lado da mesa e pergunta-me se estamos prontos para pedir, esvazio minha taça, encho-a, completo de volta e peço outra. Escolho qualquer coisa do cardápio , ela aceita a sugestão do garçom, trocam alguma piada que não escuto, a risada aguda da mulher faz com que se arrepiem meus pelos. Ela prossegue ruminando essa conversa enfadonha, sorrio nos momentos certos, faço comentários tão inúteis quanto o que ela me diz e o tempo parece arrastar-se como um verme asqueroso percorrendo um intestino infestado. Sou imbecil por me sujeitar a tudo isto; penso no precipício.
Odeio a carência que faz com que ature isto, massageio sem notar minha têmpora esquerda, ela interrompe o intragável monólogo por um instante, apenas para perguntar se está me entediando. Engulo uma resposta azeda e com um sorriso, amargo e tão verdadeiro quanto um círculo com pontas, digo-lhe que foi apenas uma pontada, a ladainha é retomada, prendo um suspiro e torno a suportá-la. Sou imbecil por me iludir e pensar que despertar ao lado dela me faria sentir menos vazio.
Se acreditasse em qualquer divindade a teria agradecido por o garçom chegar, equilibrando bandejas e rebolando como uma moçoila, com a comida, quem sabe se de boca cheia a mulher não se cala, ao menos por um tempo. Impressiono-me com sua capacidade de continuar falando entre uma bocada e outra sem perder o ritmo. Entre os perdigotos que voam de sua boca e as palavras que não escuto termino minha porçãozinha cara e pretensiosa de comida, junto com o vinho. Quando ela pergunta como consegui comer tão rápido quase responde “Porque fechei a merda da boca por dez segundos.”, sou imbecil por me conter.
Peço licença, num raro momento de silêncio, e digo que preciso ir ao banheiro, “Também, olhe quanto vinho bebeu”, juro que se não fosse a Maria da Penha tinha a tinha esmurrado. Levanto, contorno um pilar enfeitado e encontro um balcão no qual me recosto, peço ao barman, de gravata borboleta ridícula, um chope e uma dose caprichada de uísque sem gelo. Enquanto me serve tenta puxar papo, educadamente, é apenas seu trabalho, me desvencilho da conversa, em dois goles emborco o chope, o uísque, muito bom diga-se de passagem, dura uns segundos a mais. Sorrio do modo como ele me encaram peço outro Jack, pago em dinheiro e peço que as bebidas não apareçam na conta da mesa; sou imbecil por achar que a bebida pode me ajudar.
Agora tenho realmente que mijar, o faço com eficiência e retorno à mesa, repondo ao que me é indagado “Pois é, quem diria que num lugar desses ia ter fila na porra do banheiro?”. O palavrão a assusta, vejo que ainda resta um pouco de comida em seu prato, com o qual ela brinca distraidamente com o garfo de prata; tenho gana de enfiar o talher em seu olho esquerdo. Ela se enrola mais um tempo com as sobras, pergunto-lhe se não quer ir embora, “E a sobremesa?”, “Lá em casa tenho algo pra você”. Trocamos sorrisos lascivos, ela aperta minha coxa por debaixo da mesa, chamo o garçom que vem saltitante, peço um uísque de saideira, ignoro o olhar atravessado que os dois me lançam, viro a dose num gole, deixo uma gorjeta razoável, apanho a mão da desgraça que não para de falar e de braços dados vamos até o carro. Sou um imbecil de ter feito o convite.
Dirijo até minha casa, trocamos carícias, beijos e mentiras, largo o carro na garagem e atracados num frenesi galgamos os degraus e aos tropeços ganhamos a cama. Desperto tonto, a cabeça dói, o cheiro azedo do suor dela me causa náuseas, minha bexiga parece a ponto de explodir. Aperto divertido um de seus seios, levanto, chego até a cozinha, vomito na pia, meu cachorro me encara estupidamente com um ar de “Não vai comer isso?”, tiro uma vodka do congelador e bebo bons goles, um agradável arrepio percorre meu corpo.
Sou imbecil por enganar-me, pensando que ainda resta algo em mim.