JUNHO E JULHO.
As noites eram frias, eram belas. Junho e Julho na favela, um espetáculo sem igual. Os fogos de artifícios deslizavam em longas cascatas. As fogueiras iluminavam as ruas de barro com seus abajus à meia luz. Todos eram membros de uma só família, comadres e compadres, vestidos de alegria, de amizade, de bem querer. As quadrilhas, que ensaiavam há vários meses, surgiam de todos os cantos para apresentar suas novidades, seus passos, seus encantos, seus brilhos, suas evoluções coreográficas nos incontáveis arraias espalhados por toda a comunidade. Eram filhos e filhas de um povo antigo, vindo para favela, originários das roças, dos interiores, dos lugares mais distantes e remotos de todo o país. Nestas horas rememoravam suas histórias, suas vidas, seu jeito simples de ser. Tudo era festa, tudo era um grande espetáculo de riso, de descontração, de encanto, de contentamento. Em cada arraial havia um xerife de araque, um delegado de brincadeira, acompanhado de suas guarnições policiais de mentira. Suas missões eram a de capturar os compadres vindos de outros arraias, que levados à prisão improvisada, feita rudemente de bambus e folhas de coqueiros, se viam obrigados a pagar uma fiança para poder andar livremente pelo arraial que visitava. Essa fiança era sempre estipulada em um valor irrisório, cujo objetivo era unicamente o de captar recursos os extras para ajudar nas despesas de investimentos dos arraiais. Aqueles que não conseguiam escapar, pagavam o insignificante tributo com todo o prazer e sorriso. Já aqueles que não podiam pagar, ficavam presos, aquela noite inteira, até o fim da festa pedindo, com as mãos entre as grades, que alguma alma piedosa pagasse seu tributo insigne. Tudo era permitido, tudo era válido para que a festa fosse grande e divertida. Os ganhos adquiridos com vendas de beijos, de comidas, de bebidas, comas brincadeiras de corridas de saco, ovo na colher, pescarias, pau de sebo, rifas e outros jogos, também eram revertidos para as pessoas que trabalhavam nos arraias. Os moleques saracoteavam de um lado para o outro com seus brinquedos de fogo e estouro. Algumas pessoas, geralmente os mais idosos, andavam misteriosamente à meia noite, sobre o enorme tapete de brasas vivas espalhadas das fogueiras, sem queimarem as assolas dos pés, para espanto e suspiro de toda a multidão, que assistia devotada, no mais respeitoso silêncio aquela brincadeira sobrenatural dos antigos. As quadrilhas eram formadas por pessoas de todos os sexos, de todas as idades. Muitos vinham de longe, de outros bairros para participar das maravilhosas brincadeiras, das feitas no interior improvisado da favela. Casais de namorados se multiplicavam nesses dias, embalados pela inocência dolente das canções temáticas nas muitas vitrolas espalhadas pela comunidade. Iluminados pela meia luz do bruxulear das enormes fogueiras. Passeando de mãos dadas entre os labirintos de barracas de comida, saboreando as infinitas guloseimas típicas da época, se divertindo em deliciosas e inesquecíveis brincadeiras. Agora a favela era toda uma pequena e aconchegante cidade do interior, com cheiro de terra, de fogo de lenha, de verdume sem fim. Havia pureza de espírito, de encantamento, das amizades sadias. Roupas remendadas, paletós cafonas, chapéus surrados, se contra estavam com o luxo e o requinte das belas indumentárias festivas. Cuja beleza das elaborações, competia em pé de igualdade com as magníficas fantasias de destaque dos blocos nos dias de carnaval. Mestre Lula era o mais afamado líder das quadrilhas de dançarinos. Era quem surgia arrancando aplausos de todo o povo, por suas ousadias, suas graças, suas empolgantes coreografias. Pela beleza, garbo e pompa de sua colossal quadrilha. Mestre Lula não tinha gritos de comando, se comunicava quase que misteriosamente, por uma espécie de telepatia, compreendida apenas por sua grandiosa trupe de debochados bailarinos. Sem que ninguém entendesse como, sua quadrilha sabia exatamente o que mestre desejava e executava belos e precisos movimentos na hora exata, enquanto a multidão aplaudia entusiasmada, se acotovelando sobre as cordas de cipó compreendida entre o povo e o cercado onde se dava o espetáculo. Entre saracoteios desconexos, entre tombos engraçados, entre peças teatrais improvisadas, entre um mar de gente alegre e sorridente, lá se ia mestre Lula. Sempre bambo, arrastando as multidões de um arraial para o outro, com sua enorme roda gigante de gente feliz, iluminada. Com sua alegria eternizada, saracoteando vivaz, para sempre nos arraiais das lembranças saudosas.