Retrospecto

Tomei mais um trago e olhei pro espelho a minha frente, o freguês ao meu lado direito era um ébrio conhecido e tossia compulsivamente enquanto acendia mais um cigarro. Algumas das garrafas na prateleira acima do espelho tinham teias de aranha tão antigas que já deveriam estar tombadas pelo patrimônio nacional, o forte cheiro de mofo estava ainda mais característico naquela tarde chuvosa, o chão muito molhado pela água que escorria dos guarda-chuvas ensopados e pelos restos de bebidas entornados pelo piso. O ambiente criava uma verdadeira sinfonia de espirros e tossidas, a noite começava a chegar e eu preguiçosamente me perguntava:

-Ir embora?

E mais preguiçosamente me respondia em pensamento:

-Não, é muito cedo, Sílvia ainda está acordada......

Meu descontentamento com meu destino e o rumo que minha vida havia tomado, me transformaram em um ser totalmente impenetrável e avesso a ambientes familiares. Sílvia e eu estávamos casados a quinze anos, tempo esse que eu passei desconstruindo nosso relacionamento e me esquecendo dela e de mim mesmo, hoje eramos quase completos desconhecidos, o bêbado a minha direita era mais familiar a mim do que minha própria esposa. Eu não tinha filhos e não visitava meus pais a mais de sete anos, não visitava nenhum outro parente e também não tinha mais nenhum amigo dos tempos de escola ou de faculdade pra conversar ou visitar num fim de semana. Minha vida estava resumida ao meu trabalho no escritório de contabilidade e aos porres diários no bar do Sr Silas, o bar não era grande coisa mas o Sr Silas costumava me dar carona até minha casa quando fechava o bar, então eu acho que era fiel ao bar por gratidão.

Naquela noite, como de costume, esperei que o Sr Silas fechasse o bar e fui de carona com ele até a portaria do prédio onde eu morava, o elevador como sempre em manutenção me obrigou a subir pelas escadas. Entrei em meu apartamento e fui direto pra cozinha onde constatei que não havia nada pronto pra comer, no quarto reparei a ausência de Sílvia na cama, mas não me incomodei, apenas tirei os sapatos e deitei. Acordei no outro dia e a metade da cama reservada a Sílvia continuava vazia, tomei um banho pra acordar e preparei um pouco de café, bebi, coloquei o paletó e fui para o trabalho pensando que finalmente ela havia desistido daquela vidinha besta ao meu lado.

Cheguei no escritório as nove horas como de costume e acomodado em minha mesa olhei para meu reflexo no vidro da janela, assustei-me, a muito tempo não me olhava no espelho, ou melhor, a muito tempo não me reparava no espelho, até que eu não estava tão mal, parecia bem jovem ainda, logo brinquei comigo mesmo pensando na velha frase que diz que o álcool conserva. O dia passou rápido e foi de certa forma produtivo, ao sair do trabalho lembrei-me da ausência da Sílvia e resolvi não ir ao bar do Sr Silas, fui direto pra casa e encontrei a mesma vazia novamente, como já estava em casa, fiz eu mesmo o jantar e resolvi dormir um pouco mais cedo. Acordei no outro dia no mesmo horário já estabelecido pelo meu despertador interno e fui trabalhar.

Os dias foram passando e Sílvia não mais retornou, nem tampouco mandara noticias. Eu precisava lavar, passar, cozinhar e arrumar o apartamento que parecia até mais alegre agora. Resolvi largar o escritório onde eu trabalhava e fui incentivado por quem trabalhava comigo, era hora de trabalhar sozinho, abrir meu próprio escritório. No inicio as coisas pareceram um pouco difíceis, mas com o tempo me estabeleci e as coisas deram certo. Certa vez Sr Silas veio me visitar em meu escritório, de certo que sentiu minha falta no bar, não frequento mais e nem sei se ainda está aberto, tenho outras ocupações agora.

Minha vida havia tomado um rumo finalmente e sem esperar, um dia desses, uma mulher bem vestida foi ao meu escritório, me disse que precisava de um contador e que eu havia sido indicado por um amigo dela. Fiquei extremamente impressionado com seu rosto bonito e com a silhueta de seu corpo visível na transparência de seus trajes brancos, eu ofereci um drink, ela não aceitou, mas fingiu brindar comigo enquanto eu bebia e conversamos sobre o contrato. A mesma mulher voltava toda tarde e tínhamos conversas parecidas todos os dias, mas algo estranho aconteceu e comecei a desconfiar das atitudes dela, comecei a ter sonhos estranhos e posso afirmar que ela estava por algum motivo colocando drogas em minha bebida, eu me sentia estranho, via grades e ouvia pessoas gritando. Por sorte descobri o problema antes e parei de beber definitivamente também. Sílvia nunca mais retornou, sumiu no vento, como alguém que desintegra ou morre, bom pra ela e melhor pra mim. Me sinto muito bem, me irrito apenas as vezes com o barulho e essa preocupação com a segurança nesse meu novo condomínio.

PAULO TAVEIRA
Enviado por PAULO TAVEIRA em 19/02/2014
Código do texto: T4697857
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.