A LADAINHA DOS CANTEIROS

Nascem tímidos os filhotes do mundo vegetal. Da terra emergem à luz seus lambuzados olhinhos e os fiapos se espalham retorcidos de vida e verdes. O clima é veranal, não há tempo para os orvalhos debruçados, porque o sol evapora a água e os transmuta em viço. Flores em botão – multicoloridas donzelas aos meus olhos – espargem a bênção dos olores e atiçam o olfato sempre necessitado de perfumes e beleza. Uma jovem cebolinha conversa com as salsas, rúculas e alfaces, enquanto o agrião verdoengo e aveludado se espreguiça numa poça d’água. Comadreiam alvoroçados na manhã mormacenta.

Olha a pose dos girassóis, nem nos olham, só querem sorrir em direção ao céu. E aquele cão sarnento pisou nas ramagens, cavocou e jogou terra sobre os meus cabelos, reclama uma das alfaces. Ah, aqueles gatos no cio escavaram os canteiros em seus noturnos amores! Faziam um escarcéu que ninguém conseguia dormir, repinica a chicória e nem deixaram a sonolenta sementinha que abria os olhos levantar tranquila. Mas, o que fazer se este é o nosso ritual: sair do nada para viver pouco, pra depois morrer na panela e no multicolorido das saladas. Sorte tem o tomate que enrubesce – lindo – até quando cortado em rodelas, entre os pepinos que se enroscam airosos (aos olhos humanos) entre o sal e o azeite.

Bem, o desejo predominante tem um pacto com o Absoluto: viver um pouco mais além sob a saga do sol, dos frios, dos ventos, das areias em mutação. E esperar que a doçura das pitangas, dos butiás e dos araçás atraia o paladar dos bebuns, assim, mesmo fora dos galhos, pra viver mais alguns dias. Um pouco mais de sobrevida, embebidos no álcool. Olhos bem abertos e fica um solerte alerta: cuidado! Encolhamo-nos aos olhares e à palavra, que o bicho-homem está chegando com os inseticidas! Está copiando a saga de viver pouco para a estrutura, segundo os cientistas. Envenena-se, assoviando e pisando nos canteiros, deixando-os rotos, replica o alecrim. Bem, este é o circo cotidiano. O que será de nós se ele morrer cedo?

São poucos os humanos que gostam de curtir a terra e os seus singelos fetiches. Em bem poucos deles ficarão os nossos destroços e sumos por debaixo das unhas. E ainda reclamarão aos quatro ventos da sujeira entranhada. Então a água contaminada por detergente e sabão levará o conjunto dos detritos de volta às entranhas escuras. E algumas de nós farão o sempre renovado milagre da fotossíntese, na alegoria colorida das flores e dos viços – o sem-rumo do ciclo eterno de viver e renovar-se. As estrelas chegam, cerrando as pálpebras do dia. Minhocas famélicas se rebolcam encharcadas nos chorumes da compostagem.

De fora, aleatória às conversas, a vida desperta uma chuva fininha. Bem, a nossa sina é esta: viver um pouco mais além, neste Passo de Torres

MONCKS, Joaquim. A BABA DAS VIVÊNCIAS, obra inédita, 2014. Revisado.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4694893

Joaquim Moncks
Enviado por Joaquim Moncks em 17/02/2014
Reeditado em 07/10/2021
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