FOGO DE PALHA

Ontem à tarde Rita foi seguida na rua por um cachorrinho imundo, cheio de sarna, só osso e pele. O olhar do bichinho parecia o de uma criança desamparada pedindo socorro, triste, sozinha, perdida no mundo. Rita teve muita pena dele, mas não parou, continuou andando a passos indecisos pela avenida, olhando para trás, e o cãozinho no seu encalço, mancando, todo estropiado. Rita quis levá-lo para casa, para cuidar dele, tê-lo como amigo – ultimamente vinha se sentindo muito sozinha, uma companhia ia lhe fazer bem.

Então ela tomou uma decisão: ia ficar com o cãozinho, amá-lo, dar-lhe de tudo: um lar, comida, cuidados, carinho. Passaria no veterinário, que era logo ali, compraria todos os remédios necessários, vacinas, ração, uma casinha bem confortável... Depois pensaria num nome para ele...

Rita estava muito feliz...

Fogo de palha.

Assim que avistou a clínica veterinária, Rita começou a pensar melhor no assunto, analisou os prós e os contras, considerando muito mais os contras: o absurdo que seria a conta do veterinário, o preço da ração, dos medicamentos, das vacinas... Olhou para trás, o cãozinho continuava vindo, cambaleando, queimando suas últimas energias de animal faminto pedindo socorro. Nessa hora ela quase o pegou no colo, para salvá-lo, adotá-lo de vez, mas balançou a cabeça e disse para a sua consciência: “Não. Ele não será feliz comigo, não posso cuidar dele”, e imaginou uma série de desculpas esfarrapadas para não levá-lo, para não amá-lo, para não tê-lo como amigo.

Ao passar em frente a uma padaria, Rita viu que um pai e sua filha (que devia ter no máximo seis anos) já estavam com suas compras no caixa, quase saindo, e imaginou: “Ao ver o cachorrinho, essa criança vai querê-lo para ela, vai obrigar o pai a levá-lo ao veterinário, e depois vai adotá-lo como amiguinho de estimação, vai amá-lo, tenho certeza disso”.

Que alívio para Rita! Ela tinha certeza que tudo daria certo para aquele cachorrinho: que ele teria um lar, comida, carinho, amor. E com essa certeza no coração ela correu e se escondeu num beco, fechou os olhos e imaginou: “A menina está pegando-o agora, implorando ao pai: ‘Papai, posso ficar com ele? Por favor’”.

Na cabeça de Rita o pai consentiu, a menina levou o cãozinho e cuidou muito bem dele, amou-o como se ama um filho. Que lindo!

Rita ia ficar com o bichinho – ela jurava que ia –, já estava pronta para levá-lo, mas aí apareceu aquele pai e sua filha... Graças a Deus... Foi muito melhor para ele...

Só que aquele pai e sua filha não levaram o cãozinho. Ele continuou abandonado, perdido, triste, morrendo de fome. Rita foi embora por outro caminho, sem olhar para trás, com a consciência tranquila, feliz pelo desfecho que imaginou e que, na sua cabeça, era o real. “Que bom para o cãozinho”, pensou.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 14/02/2014
Reeditado em 15/02/2014
Código do texto: T4690914
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