O Casal

Eu os conheci em uma tarde de inverno nublada. A enfermaria estava cheia, quase dez pacientes separados apenas por uma tênue cortina. Nesta época o Hospital atendia a clientela sem planos de saúde particular e vivia, enquanto hospital escola, apinhado de pessoas. Por vezes faltava leitos para atender os que não tinham outros recursos a não ser contar com o Governo subsidiando o tratamento.

E foi naquela tarde, no horário de visita, que eu a vi. Ela era miúda, franzina não sei se pela idade, pelo adoecimento ou por uma constituição própria que a fazia aparecer menor, mais baixa. O rosto franzido constatava a marca dos sorrisos, das tristezas que a vida lhe havia dado. Pouco acima do lábio superior, uma ferida de aspecto marrom, com crostas espessas dava um outro contorno ao rosto... O corpo emagrecido, as mãos sulcadas pela dobras de pele ressecada seguravam as mãos de outro alguém. Era um homem, igualmente idoso, vestido de paletó desbotado pelo tempo, com uma aparência simples e distante de qualquer modismo extemporâneo. Os dois pareciam absorvidos um no outro. Os olhares que trocavam, o carinho com que seguravam a mão um do outro permitiam constatar uma sintonia, um sentimento profundo de respeito, de amor. Pareciam tão absortos um no outro que nem a movimentação pelo horário de visita nas camas ao lado os faziam desviar o olhar.

Naquela tarde eu havia sido designada para cuidar dela. Antes de quebrar aquele instante, que parecia mágico para ambos, parei próximo a cama para contemplá-los. Pude perceber a preocupação nos olhos dele e o quanto ele parecia querer protegê-la da dor, do sofrimento. Imaginei e falei para mim mesma:

- Eles devem ser casados há anos...Nossa!

Fui obrigada a quebrar o encanto. Cumprimentei-os, me apresentei e informei o que viera fazer. Eles me observavam com curiosidade. Ele, preocupado perguntou-me:

- Como ela está? O que ela tem? A senhora acha que ela vai ficar curada?

Olhei-os com atenção e me lembrei das recomendações que recebera: "os médicos é que precisavam falar o diagnóstico para o paciente". Respondi apenas que faríamos todo o possível para que ela ficasse bem, e recomendei que conversassem com o médico sobre o diagnóstico. Ele, abaixou a cabeça, como se de certa forma lesse em meu olhar que o caso inspirava cuidados. Eram pessoas sem muita instrução, mas por certo tinham a intuição do que se tratava.

Ela tinha um câncer invasivo de difícil controle. Naquela época havia poucos recursos para o tratamento do câncer...Então, o prognóstico era sombrio em muitos casos. O próprio tratamento impunha ao paciente situações de complicado manejo e, muitas vezes, os perdíamos devido a estas situações. Enfim, eram tempos sombrios.

Na tentativa de descontrair a situação perguntei há quanto tempo estavam juntos. Eles sorriram, com os poucos dentes que lhes restavam. O olhar de ambos ficou iluminado por lembranças e daí eles me contaram a seguinte história:

- Nós?...entre sorrisos...Nós estamos juntos há menos de um ano.

Esta afirmação fez cair por terra as minhas conjecturas. Como assim? E ele, então, entre os sorrisos e os olhares meio envergonhados dela prosseguiu:

- A nossa história começou há muitos anos atrás. Éramos jovens e fomos namorados. Só que, a senhora sabe, na juventude a gente nem sempre sabe o que faz...daí um dia brigamos feio. E nos separamos...Então, minha família mudou de bairro e a gente foi se encontrar anos depois...mas ela já estava noiva e ia casar. Aí, não dava mais...Eu acabei casando um tempo depois...Ela teve seis filhos e ficou casada até o marido morrer...faz o quê...uns três anos atrás...Não é minha querida?

Ela assentiu com a cabeça. E ele continuou:

- Bom, quando eu soube que o marido dela tinha morrido eu comecei a ficar mair perto...Sorriu ao dizer isso. Continuou: minha mulher já tinha morrido fazia uns cinco anos, meus filhos já estavam grandes e então...a senhora sabe...aquele amor que um dia a gente teve, reviveu...

Os dois acariciaram as mãos um do outro. Eu sorri, diante da história inusitada que me contavam. Ela, então arrematou:

- Pois é moça...nada separa a gente do verdadeiro amor...Eu sempre fui fiel pra meu marido, mas eu nunca esqueci dele...Olhou-o profundamente. Depois completou: eu sabia que um dia a gente ia ficar junto...O nosso amor era muito forte...não é querido? Ele fez que sim com a cabeça...

E lá estavam os dois...recém casados, juntos...realizando um sonho interrompido pela imaturidade, pelo destino...O mesmo destino que um dia os separou voltava a reuni-los. Fiquei emocionada e muito mais por saber o quanto eles ainda teriam que enfrentar diante do que a aguardava em função do adoecimento. Mas estavam lá, prontos para enfrentar o maior dos desafios...Antes de sair da enfermaria observei-os à distância e fiquei imaginando o mar de sentimentos em que estavam mergulhados.

O meu período naquele hospital acabou...Conheci outras pessoas, ouvi outras histórias, mas esta jamais esqueci e fico me perguntando o que lhes aconteceu. Contudo, ainda hoje posso ouvir a voz dela, tímida, frágil, emocionada dizendo:

- Nada separa a gente do verdadeiro amor...

Ana Izabel JS
Enviado por Ana Izabel JS em 13/02/2014
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