1 - RUA DESENCANTADA
Quintana a rua onde eu moro não é encantada, tem dias que ouço os sinos de igrejas, dificilmente ouço de duas simultaneamente. Outros dias não ouço nada. Quem manda na melodia dos sinos é o vento. Dependo dele e da velocidade. Os padres nem sabem que me torturam, quando espero os sinos e eles não chegam.
O mesmo vento que acaricia meus ouvidos as vezes trazem dor e sofrimento. Rebeliões e gritos de agonia no presídio feminino.
Hoje não foi nada disto. Noite fria e de garoa que penetra à alma uma gritaria de ódio mesclada com dor e suplica invade meus ouvidos. Nas cidades grandes você dificilmente conhece o vizinho do outro lado do muro. Nestas gritarias que vem e vão como se fosse uma estação de rádio de ondas curtas ninguém ouve, pois estão atentos a televisão.
Parece que era na outra rua. Um pai transtornado gritava para que alguém fosse embora e pelas palavras jogava os pertences na rua. A voz parecendo ser de um jovem suplicava, pedindo que o pai se acalmasse, outras vozes, provavelmente a mãe implorando, para que o pai não fizesse aquilo com o próprio filho, mas o pai irredutível afirmava que ele não podia ficar ali, servia só de mau exemplo às irmãs e não era a primeira vez que aparecia machucado e que não queria estar por perto o dia que metessem uma bala na cabeça dele.
A voz feminina misturada ao choro das meninas suplicava por uma oportunidade, pois o rapaz estava machucado. Ele gritava que havia corrido da polícia e caído.
Assim como os sinos as vozes foram sumindo e perderam-se na noite e eu fiquei pensativo tentando entender como os seres humanos não conseguem ser felizes, nem o rapaz, nem o pai, um pela teimosia o outro pela intransigência. As mães são especiais e conseguem perdoar, mesmo correndo o risco de que os filhos repitam as tolices.
As mães não merecem filhos assim e nós muito mesmo podemos torcer que os filhos dos outros sejam maus.
No outro dia passei pela rua do outro lado do muro, o único rastro deixado eram folhas de caderno levadas pelo vento e algumas roupas surradas, de resto somente o silêncio.
Do Livro a Força de Cada Um - 2013, 2014