ÀS MULHERES DO SOL NASCENTE

Crônica /homenagem

Já faz algum tempo que, ao vê-la, senti vontade de escrever, algo como se compulsoriamente precisasse ser escrito ao mundo.

A qual mundo?

Não importa.

Aprendi que todos os mundos são um mundo de infinitas possibilidades, e que os escritores sempre escrevemos, não aos mundos que nos ressonariam como vácuos de negligência sensorial, mas àquele mundo em especial, o que está disposto a nos ler e a nos interpretar com certa sensibilidade já vivida, compartilhada com os olhos da alma.

Eu ainda não sabia que nossas trajetórias sofreriam constantes intersecções de trilhas, desses tantos cruzamentos esotéricos dos destinos das gentes, que muitas vezes deles sequer nos damos conta, a não ser que mudem nossas vidas para todo o sempre.

Sempre, é a palavra que me inspirou minha crônica, e o meu cenário é o "sempre pelas manhãs", um sempre algo coincidente demais, embora "sempre"... sempre me pareceu uma palavra entediante, algo alongado, que nos estica demais.

Assim, agora é fato: sempre nos cruzamos, pontualmente naquele ponto da rua, exatamente quando o sol lá no horizonte nos avisa de que a vida recicla novos horizontes de lutas para todos, indistintamente, ainda que tudo nos pareça sempre igual...para gentes ilusoriamente diferentes.

Naquele ponto, senti em poucos "sempres", dos muitos que já tivemos, que embora logisticamente diferentes somos seres exatamente iguais: eu e ela, duas mulheres algo maquinadas, acopaladas ao relógio da vida.

Enquanto pelas manhãs retiro o carro da garagem com cuidado, em meio às peruas escolares que já se agitam pelos condominios, logo que atinjo exatos cinquenta metros de trajetória percorrida, ela vem em sentido oposto, numa pontualidade suiça de se admirar, claudicando sua perna com certo esforço, numa marcha solitária e silenciosa, sempre muito ofegante pela subida, como se fosse um soldado preparado para cumprir seu treinamento obrigatório para depois se apresentar ao ofício de labuta.

A princípio apenas eu a percebia, mas com o tempo, notei que ela também se deu conta de que, naquele exato momento do dia e naquele espaço pontual, ela não estava sozinha.

Sim, notou que naquele horário, somos mulheres da mesma rua apenas de sentidos momentaneamente opostos, interceptadas pelo mesmo sentido de vida e aqui confesso que sua dificuldade para chegar ao trabalho de certa forma me constrange, principalmente pelos anos a mais que parece carregar no corpo cansado, embora eu saiba que trabalhar é mister que demanda sempre pelos mesmos desafios, independentemente da materia do labor e da vida percorrida.

Quando não desafia o corpo...nos desafia a alma.

Todavia, alguns destinos nos colocam anos a mais... aqueles que ainda não conhecemos, mas aparentamos conhecê-los na carcaça.

Hoje percebi que ela levantou a cabeça quando nos cruzamos e então me abriu um sorriso de Monalisa, daqueles que misturam todos os sentimentos num só gesto de alma, algo indecifrável até aos poetas.

Talvez sorrisse para mim debochando da nossa situação engraçada do dia-a dia,robotizada repito, essa que lhes descrevo, dois seres semelhantes a um relógio de sol que pontualmente soa para a obrigação da vida.

Retribui o gesto de homenagem.

"Mulheres do sol nascente", saibam... somos muitas. Cada vez mais!

Todas mulheres diferentes,: diferentes idades e biotipos, diferentes propósitos, diferentes condições, diferentes culturas e aprendizados, diferentes histórias, diferentes conhecimentos, diferentes ofícios, todas de diferentes e singulares destinos a se cumprir.

Mas hoje, ao menos nós duas sabemos que, frente a toda diferença pontual que nos separa, somos exatamente iguais : mulheres do sol nascente que lutam pela vida. Para que a vida aconteça.

A vida, trajetória esotérica, destinada ao caminho de todos nós.

É a nós, mulheres do sol nascente, que dedico essa minha crônica extraída da rua...da vida.