Armadilhas da memória

Já falei outras vezes sobre Dona Lúcia, a senhorinha que me aluga um quarto na Asa Sul. Como não dou muito problema, não faço muito barulho, não trago ninguém para dormir comigo, e ainda pago o aluguel com uma disciplina espartana, ela me considera o inquilino ideal, quando não um próprio filho seu, coisa que já me confessou mais de uma vez. De vez em quando isso se traduz em gestos, como quando ela percebe que o meu cesto de roupas sujas está cheio e arbitrariamente lava tudo para mim – e eu tenho uma moça para fazer esse serviço.

Assim, não me admirei muito quando ela chegou em casa, bateu à minha porta e me passou uma sacola de mercado cheia de pãezinhos. “Eu me esqueci que já tinha comprado e acabei comprando de novo”, explicou. Aceitei, primeiro porque seria uma ofensa não aceitar, segundo que alguém precisava comer aqueles pãezinhos, e terceiro que fazia tempo que eu não comia aquele tipo de pão e eu estava com vontade – compro sempre aqueles pães integrais, que estão cada vez mais sofisticados, e naquele dia mesmo eu tinha um de chia e macadâmia. Levei os pães para dentro e, aproveitando que ainda estava quentinho, tratei de devorar o primeiro.

Antes ainda ouvi a Dona Lúcia se lamentar por mais uma armadilha da sua memória. Desta vez foram apenas uns pãezinhos a mais, mas houve um dia em que ela esqueceu em cima do caixa eletrônico o dinheiro que havia acabado de sacar. Voltou para casa sem a maior parte do dinheiro que recebe como aposentada. Não sei como a história terminou, apenas que os dias seguintes foram de muita dor de cabeça para ela – que já é uma mulher nervosa por natureza, inclusive dependente do bendito Rivotril.

Ouço esses relatos como uma coisa bastante distante de mim, já que me considero uma pessoa de memória privilegiada – apesar de já ter esquecido duas vezes seguidas o celular dentro de um táxi. Além disso, estou distante da velhice – mas não se engane, Henrique, que um dia ela chega pra você também.