Um pequeno excerto e um micro pensamento: Alfred Hitchcock, Carlos Gardel e Clint Eastwood
Tudo quanto lhes posso oferecer hoje, dada a exiguidade de tempo, é um pequeno excerto (para pensar) – o qual imaginei escrito por Hitchcock – e um (menor ainda) pensamento do dia (para sorrir).
Então vamos lá, pela ordem:
Excerto imaginariamente escrito pelo mestre do suspense, Alfred Hitchcock:
– “Entre, sente-se, fique à vontade; acabei de coar um chá, aceita”?
– Pois bem, não será para lecionar estilo a vocês que estou aqui, contudo creio firmemente que todo texto (de roteiro) deveria começar mais ou menos assim como esse daí de cima. Principalmente textos curtos e, mais ainda, quando a temática subordina as ações às exigências do suspense. Nesses casos é fundamental sossegar nossos leitores (ou expectadores), deixá-los bem relaxados, para então lhes pregar um susto. Qualquer um sabe que é muito mais difícil surpreender alguém que esteja atento.
Pensamento do dia:
“É mais difícil suportar com resignação meu pequeno dissabor de hoje do que todas as perdas de outrem.”
Pretendo acrescentar mais umas coisinhas acerca do nosso tema. No cinema é até certo ponto frequente vermos a direção utilizar-se da liturgia como recurso, às vezes de caráter visual (closes e planos gerais que, por exemplo, evoquem o trágico ou o macabro), às vezes para pontuar ou datar determinada imagem (enquadramentos mostrando, por exemplo, um velório de corpo presente). Ou, como fez o Hitchcock em 1936 (!) no Agente Secreto, velório onde o corpo tinha ‘sumido’ do caixão. Aliás – permitam-me abrir um parêntese – em tempo bem mais recente (2008), o Clint Eastwood diretor usa do mesmo recurso na sequência de abertura de Gran Torino. Seu personagem (Walt Kowalski, um mal humorado veterano da Guerra da Coréia), em meio a uma aglomeração de pessoas, está em pé, na Igreja, para o velório de sua esposa. O enquadramento de câmera no rosto do Clint ator, enquanto seus filhos discutem o que fazer com ele agora que a mãe faleceu, dá o tom de densidade dramática e nos ‘informa’ de tudo quanto precisamos de antemão saber para acompanhar o desenvolvimento da narrativa fílmica. Clint – que até As Pontes de Madison praticamente só tinha feito papéis de si mesmo e que foi se transformando em um excelente ator maduro e, melhor ainda, em um dos maiores diretores do atual cinema americano – nasceu em 1930 (completará oitenta anos no próximo 31 de maio), portanto estava com seis aninhos enquanto Hitchcock filmava Agente Secreto. Não quero fechar o parêntese sem antes encarecer-lhes que – se já não viram – que vejam Gran Torino e, caso já o tenham visto, que assistam de novo porque vale a pena.
Gran Torino é o nome do modelo da Ford que alcançou sucesso nos anos setenta e ganhou ‘status’ de legenda para os colecionadores de carros antigos. No filme o carro funciona como metáfora e apresenta uma dupla função: no terreno da ficção serve para delinear a personalidade de Kowalski, o veterano de guerra que odeia o mundo e protagoniza a história; na vida real, por assim dizer, parece caracterizar a carreira do ator e diretor Clint Eastwood.
É oportuno relembrar aqui, ainda uma vez, o surpreendente percurso de Eastwood – que de ator pouco expressivo de westerns e policiais durões – migrou para a direção e construiu, como poucos de sua geração, uma filmografia bem definida e diversificada. Clint tem feito quase sempre filmes com qualidade superior à média, sendo que alguns deles se revelaram verdadeiras obras-primas, como Os Imperdoáveis, Menina de Ouro e, mais recentemente, Invictus. E Gran Torino tem seu lugar garantido nessa relação.
(continuação)
Quero hoje, 24/03/2010, retomar o pequeno excerto de 3/3/2010 que supus imaginariamente escrito por Hitchcock.
A diferença é que agora pretendo efetivamente dar a palavra ao mestre.
No artigo “Alguns aspectos da direção”, originalmente publicado no National Board of Review Magazine de outubro de 1938, Hitchcock utiliza, para ilustrar melhor as diferenças entre direção de palco (teatro) e direção de tela (cinema), a primeira sequência de seu filme Agente Secreto (Secret Agent; 1936), adaptação do texto de Somerset Maugham.
Nesse filme Hitchcock reuniu um elenco onde se destacavam John Gielgud, Madeleine Carrol, Peter Lore, Robert Yong e ainda se deu ao luxo de usar em papéis menores Michel Sain-Denis (cocheiro), Percy Marmont (Caypor) e Florence Kahn (mulher de Caypor).
A despeito disso, Hitchcock achava que o filme não dera muito certo e dizia saber por quê.
Em primeiro lugar, o herói (Gielgud) recebe a missão de eliminar um agente inimigo cujo rosto desconhece e, além disso, a ideia de matar causa-lhe repugnância.
Em segundo lugar há ironia em excesso, a ponto de que quando o herói se conforma em cometer o assassinato, erra de vítima e mata um homem inocente por engano. Bem, deixemos que o próprio Hitchcock explique a sequência inicial.
“Precisava começar o filme contando à platéia que estávamos na guerra, e que o Ministério das Relações Exteriores britânico queria usar um jovem tenente como espião na zona de guerra do Leste. Por isso, fingiram que o tenente tinha sido morto na França e, secretamente levado para Londres para receber instruções. Caso eu tivesse contado esses fatos numa legenda, sob forma de diálogo ou mostrando o jovem tenente chegando vivo da França, o resultado teria sido bem sem graça. Em vez disso, comecei o filme com o close de um caixão. O caixão está num aposento sombrio, coberto com a bandeira britânica, e, de imediato, cria um clima de total solenidade. Esse clima é aprofundado quando a câmera começa a recuar, muito lentamente, quase como se ela própria estivesse andando na ponta dos pés, e a platéia vê quatro velas altas acesas nos cantos do caixão, e um grupo de pessoas enlutadas. Quando essa cena teve tempo de se esgotar, as pessoas vão lentamente, em fila, deixando o aposento até que só uma permanece – o criado de um braço só, que reverentemente fecha as grandes portas quando o aposento fica vazio. Aí, sozinho, tateia os bolsos, atrapalhado, à procura de um cigarro, coloca-o na boca e o acende na chama de uma das velas. Essa falta de reverência é o bastante para mudar o estado de espírito da platéia da tragédia para a suspeita. O criado vai até o caixão, arranca a bandeira e tenta tirá-lo da base em que está apoiado. É pesado e desajeitado demais para seu único braço; cai e a tampa se abre. Está vazio! O criado se vira e olha com desdém para o retrato de um jovem na parede. Depois da fotografia do grupo de luto, a câmera chegou bem perto do homem de um braço só. Agora, muda para o retrato que ele contempla. Lentamente, a cabeça do retrato vai desaparecendo, e corto para a mesma cabeça sobre os ombros de um rapaz perfeitamente vivo, sentado num escritório em Londres, recebendo instruções para o trabalho como espião. Um pequeno diálogo, um plano das manchetes de jornal que anunciam problemas no Leste europeu, e a platéia fica sabendo exatamente o que aconteceu, quem é o rapaz e para onde está indo. O clima de mistério já foi criado; a platéia captou a idéia do que está ocorrendo e está aberta para novas impressões. [...] Permitiu-se à platéia partilhar do segredo da identidade do agente desde o início. Gosto de fazer isso sempre que posso, Acho que essa participação no segredo intensifica muito o interesse. Os espectadores sabem de tudo, mas estão cientes de que muitas pessoas na tela não sabem – e é isso que os mobiliza. [...] Sim, compartilhe seus segredos com a platéia e ela prestará atenção neles.”
(Os textos acima foram publicados originalmente em 3/3/2010 e 24/03/2010 no Blog http://lucabarbabianca.zip.net).
Agora fica aqui um convite para que vejam (revejam) o filme.
Aproveitem para comparar a sequência inicial de Agente Secreto, de 1936, com a utilizada por Clint Eastwood em Gran Torino, de 2008.
Gardel diz no tango Volver que “veinte años no és nada”. Gardel continua perfeitamente vivo na obra que nos legou, mas morreu em 1934 quando nenhum dos dois filmes existia. Lembro sua frase para acrescentar que entre um filme e outro transcorreu mais de meio século.
Pensem nisso.
E bom divertimento.