Palpite feliz
Telefonema de uma amiga do peito.
Há duas ou três noites Minuca sonhou com Allan Poe, e no dia seguinte ganhou uns trocados no bicho: jogou oito reais no gato, e deu gato na cabeça.
Tempos de Operação Furacão, lembrei-lhe com delicadeza que não era uma boa tratarmos do assunto pelo telefone, podia dar bode. Ainda assim, para não perder a oportunidade de aprender mais sobre isso, arrisquei um breve comentário:
“Eu não sabia que sonhar com Allan Poe dava gato. Qual é a relação?”
“Não há relação alguma, é palpite direto”, respondeu Minuca. Mas logo se deu conta do meu engano, caiu na risada e explicou: “Me desculpe. Esse Allan Poe que eu estou falando é o nome de um gato preto que tem aqui na pracinha perto de casa.”
“Tudo bem”, disse eu. “Só que a pessoa que batizou ele devia estar pensando naquele conto do escritor norte-americano. Você sonhou com um trocadilho de primeira.”
“E acertei!”, concluiu Minuca, toda exultante, brasileira feliz com os 144 reais que embolsou.
Contou-me o sonho.
Fazia uma caminhada com o filho e o dachshund deles. A pedido do garoto, pararam um instante num banco da tal pracinha. Muito inquieto, Bartolomeu livra-se da coleira e sai em disparada de um lado para outro, farejando tudo o que encontra pelo chão, inteiramente surdo aos chamados da dona. Late, deita e rola na grama, cheira a bunda da vira-lata de um vizinho, corre atrás das borboletas, mija, faz cocô, um porre de desassossego. Súbito, como um anjo negro dos parques, Allan Poe aparece de lugar nenhum, posta-se diante do cãozinho frenético e começa a hipnotizá-lo, descaradamente. Bartolomeu pára de repente, imobiliza-se, não dá um pio, subjugado pelo obstinado fulgor daqueles olhos felinos. Talvez para deixar bem claro todo o seu desprezo pelo dachshund petrificado à sua frente, Allan Poe abre um enorme bocejo, volta-se para o lado de Minuca, que admira a cena cheia de pressentimentos, e abocanha o bolo de dinheiro que ela trazia na mão, comendo-o em seguida. (Pano.)
Pelo cuidadoso relato do sonho, percebi que o papo de minha amiga era outro. Não me ligara só para contar que tinha dado uma mordida no bicho (no jogo do bicho, claro). Queria, sim, é que este pobre cronista decifrasse toda a simbologia do que ela havia sonhado. Meu Deus, que posso dizer?
Desde os tempos da faculdade (cá entre nós, coisa de uns trinta anos) Minuca não tirou mais da cabeça a idéia de que eu sou melhor do que Freud na interpretação de sonhos. Bebia-se muito naquele tempo. Quantas e quantas vezes ela, Alvanísio e eu não saltávamos da barca em Niterói e, em vez de seguir até o Ingá, onde ficava nossa escola, parávamos sedentos no boteco do Cabral, de onde só saíamos para pegar a última barca de volta ao Rio. Não é impossível que depois de meia garrafa de conhaque, além das cervejas, eu me pusesse descaradamente, como o outro, a interpretar sonhos e até pesadelos. Deve ser isso. Tenho uma vaga lembrança de passar um pouco essa impressão, mas era coisa de bêbado, mesmo levando-se em conta que os bêbados não deixam de ter uma certa cumplicidade com o inconsciente. Mas Minuca também ficava de carinha cheia, não era para ter levado tão a sério o meu exibicionismo. Ou será que andei interpretando sonhos que na vida real, por assim dizer, se revelaram compatíveis com a minha leitura e ela nunca me contou?
Sei lá... O certo é que não entendo nada da simbologia dos sonhos, minha doce Minuca. Mas vá sonhando e aproveitando os seus palpites felizes. Se bobear, quando os fortes ventos da Operação Furacão passarem por esse ponto do bicho, você já arrebentou a banca.
[29.4.2007]
Telefonema de uma amiga do peito.
Há duas ou três noites Minuca sonhou com Allan Poe, e no dia seguinte ganhou uns trocados no bicho: jogou oito reais no gato, e deu gato na cabeça.
Tempos de Operação Furacão, lembrei-lhe com delicadeza que não era uma boa tratarmos do assunto pelo telefone, podia dar bode. Ainda assim, para não perder a oportunidade de aprender mais sobre isso, arrisquei um breve comentário:
“Eu não sabia que sonhar com Allan Poe dava gato. Qual é a relação?”
“Não há relação alguma, é palpite direto”, respondeu Minuca. Mas logo se deu conta do meu engano, caiu na risada e explicou: “Me desculpe. Esse Allan Poe que eu estou falando é o nome de um gato preto que tem aqui na pracinha perto de casa.”
“Tudo bem”, disse eu. “Só que a pessoa que batizou ele devia estar pensando naquele conto do escritor norte-americano. Você sonhou com um trocadilho de primeira.”
“E acertei!”, concluiu Minuca, toda exultante, brasileira feliz com os 144 reais que embolsou.
Contou-me o sonho.
Fazia uma caminhada com o filho e o dachshund deles. A pedido do garoto, pararam um instante num banco da tal pracinha. Muito inquieto, Bartolomeu livra-se da coleira e sai em disparada de um lado para outro, farejando tudo o que encontra pelo chão, inteiramente surdo aos chamados da dona. Late, deita e rola na grama, cheira a bunda da vira-lata de um vizinho, corre atrás das borboletas, mija, faz cocô, um porre de desassossego. Súbito, como um anjo negro dos parques, Allan Poe aparece de lugar nenhum, posta-se diante do cãozinho frenético e começa a hipnotizá-lo, descaradamente. Bartolomeu pára de repente, imobiliza-se, não dá um pio, subjugado pelo obstinado fulgor daqueles olhos felinos. Talvez para deixar bem claro todo o seu desprezo pelo dachshund petrificado à sua frente, Allan Poe abre um enorme bocejo, volta-se para o lado de Minuca, que admira a cena cheia de pressentimentos, e abocanha o bolo de dinheiro que ela trazia na mão, comendo-o em seguida. (Pano.)
Pelo cuidadoso relato do sonho, percebi que o papo de minha amiga era outro. Não me ligara só para contar que tinha dado uma mordida no bicho (no jogo do bicho, claro). Queria, sim, é que este pobre cronista decifrasse toda a simbologia do que ela havia sonhado. Meu Deus, que posso dizer?
Desde os tempos da faculdade (cá entre nós, coisa de uns trinta anos) Minuca não tirou mais da cabeça a idéia de que eu sou melhor do que Freud na interpretação de sonhos. Bebia-se muito naquele tempo. Quantas e quantas vezes ela, Alvanísio e eu não saltávamos da barca em Niterói e, em vez de seguir até o Ingá, onde ficava nossa escola, parávamos sedentos no boteco do Cabral, de onde só saíamos para pegar a última barca de volta ao Rio. Não é impossível que depois de meia garrafa de conhaque, além das cervejas, eu me pusesse descaradamente, como o outro, a interpretar sonhos e até pesadelos. Deve ser isso. Tenho uma vaga lembrança de passar um pouco essa impressão, mas era coisa de bêbado, mesmo levando-se em conta que os bêbados não deixam de ter uma certa cumplicidade com o inconsciente. Mas Minuca também ficava de carinha cheia, não era para ter levado tão a sério o meu exibicionismo. Ou será que andei interpretando sonhos que na vida real, por assim dizer, se revelaram compatíveis com a minha leitura e ela nunca me contou?
Sei lá... O certo é que não entendo nada da simbologia dos sonhos, minha doce Minuca. Mas vá sonhando e aproveitando os seus palpites felizes. Se bobear, quando os fortes ventos da Operação Furacão passarem por esse ponto do bicho, você já arrebentou a banca.
[29.4.2007]