3 - O TEMPO DE VIDA SÓ DEPOIS DA MORTE
Enchi tanto a minha mãe que ela mandou que eu sentasse no banco da praça e calçasse o sapato, meu primeiro sapato de couro comprado numa loja de calçados na esquina das avenida Venâncio Aires com rua José do patrocínio, a loja sobreviveu até meados deste século. Calçar os sapatos tinha uma condição, chegando em casa eu colocaria novamente as surradas alpargatas de cordas.
No ano de 2012 passei pela praça Garibaldi e os bancos tinham ido embora e de quebra pelo menos duas das paineiras que testemunharam eu calçando o meu primeiro sapato de couro jaziam em toras sobre a calçada. Cuidadosamente examinei os troncos e fatias que a motosserra havia produzido e nenhum sinal de doença, de podridão um tecido aparentemente sem doenças de um alaranjado saudável.
Próximo ao chão pelo menos uns 30 Cm de tronco intimamente ligado as raízes deixava brotar gotículas da seiva que a alimentara por quase duzentos anos. A já desfalecida e não mais imponente paineira instintivamente continuava produzindo o néctar da vida.
Apanhei um pedaço de arame e fui arrastando do centro até a borda, pelo menos entre 190 e 200 pequenos toc, toc deram-me a noção dos anos que se passaram desde que ela havia nascido. Mais tarde fiquei sabendo que a espessura das crostas podem indicar o rigorismo das estações do ano.
Não havia nada a ser feito, morta jazia sem ao menos um olhar de compaixão dos transeuntes.
Foram-se os sapatos, os bancos e as paineiras, restou eu desolado e triste, sempre entristeço quando vejo o descaso com as paineira, figueiras, pinheiros, enfim com todas elas.
Este é o relógio que não tem ponteiros, não badala, não precisa de corda, registra o tempo pela vida, sem vida para de pulsar.
Sempre que encontrares um tronco de uma árvore conte as camadas do centro para fora e saberás o quanto ela conseguiu burlar os seres humanos.
Do Livro: O tempo de cada um - 2013, 2014