50 tons de indignação, os mais escuros e os libertos.
“Mulher de pobre quando apanha do marido é Lei Maria da Penha, mulher de rico quando apanha do marido, é 50 tons de cinza”. Este excerto é a fala de uma personagem de Malhação, programa exibido na rede globo voltado ao público Teen. Poderia escrever uma bíblia a partir disso, mas vou me ater aos fatos.
A fala da personagem faz uma analogia ao “best seller” 50 tons de cinza, o primeiro livro de uma trilogia ridícula voltada às mulheres maiores de idade e, creio eu, insatisfeitas em suas relações sexuais, que queiram apimenta-las . Digo ridícula porque os livros são campeões em vendas e por terem sido considerados “best sellers”.
Os li sim, não vejo motivos para negar, por pura curiosidade e para saber o motivo de terem sido tão aclamados pelo público feminino.
O que eu achei? Incoerências linguísticas, frases mal formuladas, erros de concordância, e muitos erros de pontuação. Talvez esses equívocos sejam erros na tradução, na edição, sabe-se lá. Mas o que NÃO achei é ponto mais alto.
O que NÃO achei foi um “best seller” ou, no caso, três “best sellers”, NÃO achei romance, NÃO achei enredo, NÃO achei diálogos consistentes para manter três livros, NÃO achei personagens , nem planos nem esféricos, também para tal fim, e olhem que procurei bastante, com olhos de lince eu diria, afinal eu precisava de um motivo para a febre Grey.
Mas voltando ao tema central desse texto, a analogia em Malhação: Analogia (s.f. Em que há relação de correspondência ou semelhança entre coisas e/ou pessoas distintas.).
O que o autor, ou a autora (não sei dizer) do folhetim global quis estabelecer com tal fala? Que mulheres ricas podem apanhar dos maridos e não precisam denunciar, pois não é um crime ser submetida à dor se isso der prazer ao parceiro? Ou que se deve redigir um contrato assinado por ambos estipulando os limites de dor na relação sexual? Ou, talvez, que um homem, desde que seja rico e lindo pode fazer da mulher um brinquedo de vodu, inserindo nela quaisquer objetos se estes forem comprados numa loja especializada em sadomasoquismo? Ou, ainda, o ponto que mais me revolta; que as menininhas de doze ou treze anos, isso chutando alto, já que a faixa etária indicativa do folhetim é de dez anos, que assistem Malhação, devem ler 50 tons de cinza e achar o máximo se relacionar com um maníaco doente por sexo que queira prender os mamilos delas com grampos, ou dar-lhes tapas e reguadas nas nádegas a cada vez que elas revirarem os olhos para eles? Isso citando apenas as partes “mais leves” do sadismo do sr.Grey.
Se a trama Malhação é inadequada para menores de dez anos, isso significa que crianças a partir dessa idade podem assistir normalmente a novelinha e ver que a primeira relação sexual da Anita foi postada na internet, que o Antônio colocou uma bomba numa praça cheia de crianças, que a Sofhia é uma fútil estúpida que só pensa em dinheiro, que o Ben, que sempre foi o bonzinho, só se ferra na história e que vale a pena então ser o bad boy, que a Michaella conseguiu fisgar definitivamente o namorado pegador depois de rebolar seminua ao som do funk nas mesas de um bar, e finalmente que a filhinha de papai Flaviana acha normal apanhar do marido se ele for lindo e rico?
Que existe público para tudo isso é óbvio, mas será saudável aos milhares de jovens que talvez nem tenham entrado na adolescência ainda e que estão moldando sua personalidade de acordo com os modelos de adultos que têm; assistirem, e por que não dizer, imitarem, o comportamento que lhes é mostrado na TV como válido?
Qual é o futuro que se vislumbra às crianças que vêm nesse programa uma escola na qual se pode entrar com shorts super curtos, colocar câmera no banheiro sem que haja uma punição, ou que, se for bem dissimulado e conseguir enganar um psicólogo numa instituição para menores, se pode obter a liberdade e ainda ser aceito e elogiado pela comunidade na qual se está inserido?
Finalizo meu texto indignada e deixo as questões acima para que esse meu desabafo possa ao menos fazer com que uma parcela, ainda que diminuta da sociedade, reflita e considere a possibilidade de se fazer ouvir.
Isabel Cristina Oller
Professora de Língua Portuguesa e Literatura.