Fotografar um morto

Sempre sobra para o estagiário. Um dia pediram que fosse ao centro cirúrgico tirar foto de um equipamento novo. E ainda ficaram botando pilha: “Um dia eu fui lá bem na hora que estavam abrindo a cabeça de um homem”. Mesmo com medo, tinha que ir. Centro cirúrgico é aquela coisa, não é qualquer um que entra. Tem meia dúzia de portas até chegar lá e só liberam o acesso depois que a pessoa se vestir adequadamente dos pés à cabeça. Depois é um corredorzão, cheio de gente entrando e saindo pelas portas, e o melhor é nem imaginar o que acontece do lado de dentro. Daquela vez teve sorte, porque o equipamento que precisava fotografar estava em uma sala vazia. Não viu nenhuma cabeça sendo aberta.

Mas teve o dia que pediram para ir ao necrotério. Fotografar um morto sem família, na esperança que aparecesse alguém para identificá-lo. Necrotério é aquela coisa, uma geladeira enorme cheia de gavetas e dentro delas uma maca toda coberta para que ninguém veja o morto deitado nela. Quando chegou lá, tentou simular a mesma naturalidade do atendente de necrotério, que era um sujeito que já havia perdido qualquer sensibilidade. Nos primeiros meses de trabalho, havia parado de comer carne. Hoje é capaz de comer um hambúrguer ao lado da geladeira.

Este homem puxou a gaveta, ao mesmo tempo em que reclamava que a porta estava com defeito e se não abrisse com cuidado caia uma rodinha. A maca foi descida e o estagiário não sabia de qual lado estava a cabeça. Até que o atendente revelou o rosto do morto e praguejou: “Merda, tá vazando”. Limpou então a boca, de onde escorria um líquido amarelado, e estendeu um pano embaixo da cabeça para deixar a cena menos feia para se fotografar. Montado o cenário, era a vez do estagiário. Ele se aproximou cauteloso, como se a própria morte fosse contagiosa. Mas suspirou, fez o foco e disparou a máquina. Sete vezes. Porque não adiantava o morto ficar quietinho: mesmo diante da sua figura imóvel, todas as fotos saiam tremidas.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 07/02/2014
Reeditado em 07/02/2014
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