Eu na praia comigo mesmo
 
Eu comigo mesmo fui comprar camarão. Já era tarde. O mercado da colônia dos pescadores cerrava as portas.
 
Felizmente três pequenas peixarias ainda estavam abertas, no lado de fora. Numa delas, aquela do rapaz que assusta a freguesia vendendo antipatia e fazendo cara de lutador do UFC na fotografia promocional da luta, encontrei os crustáceos de bom tamanho. Aparência de frescos. Da espécie branco, de cativeiro, como quase todos são agora.
 
Perguntei ao simpático se ele descascava. Não. Então vai com casca mesmo. Em casa damos um jeito.
 
Falei comigo mesmo vou fazer ao bafo. Não precisa tirar a casca. Então selecionei uma parte para o jantar. Livrei o restante das cabeças, lavei, dividi em duas porções, e coloquei no freezer.
 
Cebola, alho, sal, pimenta-branca, cebolinha verde, salsa, tomate pelado picado. Faltou alfavaca. Poucos minutos depois estava no ponto. Uma delícia que eu comigo mesmo saboreei devagar, acompanhada de fatias de broa de centeio caseira da dona Marta. Claro, uma cervejinha, porque não sou de ferro.
 
Lavar a louça. Chato. Na panela um caldo bonito. Não tive coragem de descartar. Guardei na geladeira pensando em fazer um pirão no dia seguinte.
 
Falei comigo mesmo vou pescar. Anos não pescava. Vara grossa de poeira. Caixa de apetrechos também. Ponho-me à limpeza. Lubrifico o molinete. O tempo passou, ficou tarde. Decidi comigo mesmo deixar a pescaria para a manhã subsequente. Antes do nascer do Sol, estarei na praia.
 
Termino o dia com uma cerveja gelada, caneco de vidro transparente tornado branco e opaco devido ao choque térmico recebido na saída do congelador. Da sacada observo a tarde morrer, as primeiras luzes acenderem-se nos apartamentos e na rua. Fatias finas de salame tipo milano e azeitonas verdes de tira gosto.
 
Mudei de ideia quanto ao pirão. Eu comigo mesmo alterei os planos. Um risoto cairia melhor.
 
Saquei do freezer uma pequena porção de camarões descascados. Descongelei, temperei com sal e pimenta-branca. Esquentei o caldo do camarão ao bafo do dia anterior.
 
Refoguei meia dúzia de dentes de alho inteiros. Joguei uma porção de arroz sobre eles, mexendo com a colher de pau. Acrescentei água quente e uma pitada de sal. Deixei cozinhar. Enquanto isso, refoguei na manteiga os camarões temperados. Bonitos que só, juntei ao molho e esperei a água do arroz diminuir.
 
Ao arroz meio al dente, antes de secar no fundo da panela, despejei o caldo com os camarões. Não parei de mexer com a colher de pau até o ponto de risoto. Evitei o vinho branco porque não aprecio vinho na comida. Questão de gosto. Prefiro na taça.
 
O resultado superou a expectativa. Um risoto cremoso, bonito, aromático e, sobretudo, saboroso. Às porções repetidas várias vezes deitei queijo parmesão, que eu comigo mesmo havia ralado.

Pensava em acompanhar o prato com vinho branco. Entretando, para preencher o hiato entre a cerveja e o vinho, resolvi comigo mesmo tomar uma dose de Underberg com gelo. Tomei mais uma. Abandonei a ideia do vinho e disse eu comigo mesmo que como a garrafa estava no fim, melhor acabar logo com ela. Risoto de camarão com um bom parmesão, acompanhado de um amargo. Inventei essa.
 
Perdi a hora da pescaria. Quando acordei, o sol invadia o apartamento através da janela da sala. Cadê coragem para enfrentá-lo na moleira, rente ao mar, pescando? Após o café, fui comigo mesmo dar uma caminhada na praia.
 
Temporada praticamente acabada. Na areia pouca gente. Alguns jovens casais com crianças em idade ainda não escolar. Velhos descompromissados e senhoras sozinhas ou acompanhadas de outras. Talvez viúvas, descasadas ou solteironas convictas ou invictas - quem sabe? Muitas traziam na face a aflição da busca excruciante por um marido. Ou apenas um companheiro ocasional.
 
Junto ao Morro do Boi, onde Caiobá pretende ser mais Caiobá, e talvez seja mais divina, conforme a expressão cunhada pelo falecido colunista social Dino Almeida, um grupo de juízes, desembargadores e outros doutores aposentados jogavam tênis em duplas. O mais velho, único que trajava uniforme completo de tenista, aparentava cerca de noventa anos. De cada três bolas que vinham ao seu encontro, ele errava duas. Das que conseguia rebater, de três uma ficava na rede. De vez em quando, ao errar, soltava um grito, um gemido, ou dizia alguma coisa ininteligível. Palavrão, acho que não era.
 
Daí eu disse para mim mesmo veja que exemplo. Noventinha nas costas e firme na raquete. É isso aí, aconselhava o meu pai: Não se entregue, nem que morra.
 
Outro do grupo, dos mais novos, imaginei que fosse cirurgião. Suas cortadas tinham a firmeza e precisão de quem manejava muito bem um bisturi.
 
Voltando também pela praia, avistei no calçadão o carrinho do Alemão, que eu chamo de Polaco. Na verdade, um descendente de ucranianos de Ivaí, Interior do Paraná, que há 24 anos vende coco, cerveja, água e refrigerante na praia, e ainda não perdeu o sotaque eslávico dos pais imigrantes. Lembrei-me de que na véspera ele escolheu o maior coco para mim. Enorme. Mas achei que ele me serviu meio desconfiado porque me disse experimenta. Dei o primeiro gole e me perguntou se estava bom. Estava.
 
- Servindo coco estragado, Polaco? Se amanhã eu não aparecer, você já sabe que eu morri. E de quem é a culpa.
 
Pensando que o homem pudesse ficar preocupado se não me visse naquele dia, decidi comigo mesmo deixar o frescor da areia molhada e cruzar a faixa de areia fofa e escaldante até o calçadão. Calcei os chinelos e fui em frente. Descalço não conseguiria. Dava perfeitamente para cozinhar um ovo naquele solo.
 
Dizendo sobrevivi ao seu coco de ontem, pedi ao Polaco outro bem gelado. Mas desta vez não adiantava escolher, eram todos pequenos. Todavia geladíssimo estava.
 
Terminei o coco jogando dois dedos de prosa fora, e em seguida voltei ao rumo de casa. No caminho falei comigo mesmo amanhã, antes do Sol nascer, vou pescar. Comigo mesmo respondeu com o sorriso dos incrédulos.


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N. do A. – Na ilustração, a praia de Caiobá vista a partir das pedras de Matinhos em foto do autor. À esquerda, no fundo, o Morro do Boi.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 07/02/2014
Reeditado em 03/08/2021
Código do texto: T4681769
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