Jantava cubos de gelo

Jantava cubos de gelo, ela me disse. E ouviu isso da boca dele mesmo. Sabíamos que era chegado em um drama pessoal, mas ela estava convencida de que dessa vez não exagerava: ele realmente jantava cubos de gelo. Assim como comia bolachas recheadas no café da manhã e almoçava um daqueles pasteis fritos e gordurosos do Viçosa. Cocei a cabeça: a situação realmente era complicada. A gente sempre brinca que o salário acaba antes do mês, mas nem por isso deixamos de comer – mesmo que para isso seja necessário atrasar o pagamento de alguma conta. Mas ali estava o caso de alguém que não tinha o que atrasar além da própria saúde. Imagino que só se chega a um estágio como esse a custa de muita honestidade. Não sou exatamente seu amigo, então ignoro quais dificuldades exatamente o levaram a essa situação de necessidade. É possível que em outras oportunidades eu não tenha dado a atenção devida à sua história de vida. Agora me custava admitir que jantasse cubos de gelo.

Ela me contou que ainda faltava mais de uma semana até que ele recebesse o seu próximo salário. Até lá, se ninguém fizesse alguma coisa, ele certamente manteria a sua dieta. Por isso ela teve a ideia de passar no supermercado e fazer umas comprinhas de surpresa para ele. Pelo menos desta vez. E perguntou se eu não queria ir com ela. Considerei que aquela situação poderia muito bem estar acontecendo comigo. Temos inclusive algumas coisas em comum: moramos sozinhos, longe da família e ganhamos pouco. Achei que um gesto de solidariedade como aquele só iria fazer bem e fui com ela às compras.

Enchemos um carrinho de coisas saudáveis, como frutas, pão e leite, e outras apenas gostosas, como iogurte, biscoitos e achocolatados. Peguei ainda uma barra de chocolate, porque é bom que ele sinta algum prazer comendo e assim se esqueça que a vida é difícil. Sem falar nos sucos, porque é preciso dar outra serventia para os cubos de gelo.

E fomos entregar, como uma cesta de Natal atrasada.