JACOVIC – UMA PESSOA ENIGMÁTICA

Jacovic é um pseudônimo que criei para falar de uma pessoa que conheci em 1970 numa companhia de mineração em Rondônia. Éramos um grupo de “solteiros” (nem todos, alguns estavam sem suas esposas) que vez ou outra nos reunia em um restaurante para comemorar aniversário, tomar umas e outras e lamentar a saudade de parentes.

Jacovic era uma pessoa muito reservada, raramente saía do acampamento, muito embora sempre fosse convidado. Durante o expediente, era uma pessoa muito solícita, durante as refeições conversava o mínimo possível, mas sempre respondendo educadamente quando argüido.

No dia do meu 28º aniversário conseguimos que Jacovic fosse conosco tomar um vinho branco que ele mesmo escolheu na adega da companhia. Não me lembro da marca do vinho, só me lembro de que era alemão. Jacovic, estrategicamente, sentou-se de frente para a porta de entrada do restaurante e muito atento a todos que entravam. Depois de comer um caldeirado de tucunaré fui saudado com aquele vinho. Naquele dia ele estava sorridente, rindo das piadas, mas sempre atento à porta. Teve até quem comentou após o encerramento:

- Finalmente, o Jacovic saiu do confinamento, quem sabe se a partir de agora ele integra o grupo. Ele até bebeu, moderadamente, coisa que eu estou aqui há muito e nunca tinha visto.

No acampamento havia outro confinado, que, literalmente, chorava de saudade das filhas e da esposa que ele não via há seis meses quando partiu da Europa. Bebia muito uísque e tomava comprimidos de sulfa, pois tinha um medo pavoroso de contrair malária. Este nunca saiu conosco, curtia sua fossa.

Acho que Jacovic foi com minha cara, pois no dia do meu regresso foi comigo até o aeroporto, dias antes da partida tínhamos tirado uma foto.

Não sei quanto tempo se passou, se um ou dois anos, mais que isso não foi, encontrei-me com o administrador da companhia no aeroporto de Congonhas. E claro, como vai o pessoal?

- Estou indo para lá agora, a empresa foi vendida e vou para fazer os ajustes finais. Quanto ao pessoal, todos voltaram para seus estados. O Lacerda (que era pernambucano) comprou um fusca pé-de-boi, e se meteu na Transamazônica com a família, disse que era a oportunidade de conhecer o Brasil de Oeste a Leste, não tivemos mais notícias dele. O Alberto voltou para o Amapá. O Garcia voltou para Sorocaba. O Jacovic desapareceu.

- Como? Perguntei.

- No dia seguinte ao seu desaparecimento, apareceram no acampamento uns detetives judeus com a foto dele com uniforme militar, fazendo muitas perguntas. Isso foi bem antes de a empresa fechar. Foi surpresa geral, ninguém sabe do paradeiro dele. Certamente, ele foi avisado e fugiu. Desapareceu durante a madrugada levando o tudo pouco que tinha. Não nos contaram o porquê daquela investigação, mas deu para perceber que ficaram bastante frustrados.

Esse encontro com o ex-administrador deixou minha mente mais esclarecida. Agora eu entendia o seu confinamento, seu olhar atento para a entrada do restaurante, a escolha do vinho, sua mudez, tudo o que era estranho naquela pessoa bastante amável com o pessoal. Que crime teria ele cometido?

Eu o conheci em 1970, vinte e cinco anos após o fim da 2ª Grande Guerra Mundial. Ele não tinha traços na face que indicasse uma cirurgia plástica, portanto ainda era fácil reconhecê-lo.

Certa vez, não muito tempo depois, contei esse episódio a uma pessoa, inclusive que eu tinha uma fotografia tirada com o Jacovic.

- Você tem um trunfo milionário nas mãos, os judeus pagam uma fortuna para quem der uma pista desses procurados.

Respondi revoltado: - Quando nasci a guerra já estava deflagrada, nada tenho com isso, não sei o motivo da investigação e ele foi muito legal comigo e com todos. Não farei uma coisa dessas por dinheiro algum. Vencerei na vida com minha consciência tranqüila. Não posso pensar em vida confortável, sabendo que a origem do meu conforto é de uma delação com uma pessoa perpetuamente atrás das grades ou condenado à morte. Meu nome é Santo e não Judas, o traidor.

Para não ficar com “minhocas” na cabeça, recortei e queimei a fotografia, mas não me esqueci do semblante do Jacovic. Passados quarenta e quatro anos, será que eu o reconheceria? Tenho minhas dúvidas, acho que não.

- Jacovic, seu verdadeiro nome nunca saberei, caso você esteja vivo, provavelmente com mais de noventa anos, e tenha a oportunidade de ler esta crônica, saiba que eu lhe mando um forte abraço!!! Continuo pobre, mas de consciência tranquila. Tenho insônias, mas por outras razões, tais como revolta pelo não reconhecimento de tudo que fiz de bom neste mundo. Tenho certeza que nossos colegas daquela época também compartilham esse abraço.

SANTO BRONZATO em 05/02/2.014.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 05/02/2014
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