Coisas da vida

Uma semana em Lisboa, para além de todo o inconveniente que isso me acarreta pelo facto de estar sozinho, permite-me também o doce convívio com os meus amigos no café do Niquinho. Já escrevi duas ou três crónicas envolvendo aquele local e esta é mais uma ou não fosse este o meu local favorito para ouvir e contar novidades.

Para muitos não passará de um café com o entra e sai continuo de clientes de ocasião que tomam desde uma simples torrada a um pequeno almoço mais requintado, outros, um café ou meia de leite.

Mas o que me seduz, são as pessoas que o frequentam diariamente em horas específicas, como; a hora do almoço, ou depois das seis. Aí se comentam as noticias diárias ou os acontecimentos desportivos, onde a rivalidade clubística é tema de alguns amuos, mas compensados logo a seguir por uma bebida, que nos ajuda a esquecer esses momentos menos bons, isso, só até o desaire da equipa adversária fazer com que contra ataquemos devolvendo os mimos.

Eu como pessoa bem-disposta, raramente me deixo envolver por esses ditos, confundindo os meus amigos quanto à minha simpatia clubística. Mas que sofro, sofro, ainda que não mostre.

De entre os clientes que frequentam o estabelecimento há um com quem gosto imenso de conversar. É o amigo Diamantino, um Alentejano de quatro costados, bonacheirão e sempre com uma história para contar seja qual for o tema da conversa. Muitos não simpatizam tanto com ele como eu, mas eu deliro com as historias dele, embora falhe em algumas coisas, tem no entanto um conhecimento geral que surpreende muitos intelectuais. Por isso. nem sempre é compreendido pelos outros amigos que o acusam de ter a mania de que sabe tudo e que só ele é que fala. Como eu sou mais de ouvir do que falar, o amigo Diamantino sente-se comigo como peixe na água.

- Pois é António, os sapos soltam aquele cordão de onde nascerão os girinos que por sua vez se transformam em rãs… - Aqui tive que o interromper.

- Desculpe Diamantino, mas se são girinos de sapo, não são rãs!

- São, eles com a idade passam de rãs a sapos. – Diz ele convicto.

Nesta altura, um outro ouvinte entraria em conflito como meu amigo neste é, não é. E de facto assim é, pese o facto de eu lhe reconhecer muito saber. Mete muitas vezes os pés pelas mãos dizendo e teimando em disparates que é um deus nos acuda, mas reconheço que sabe muito, só que se esquece que não é dono do conhecimento e daí haver azedumes quando alguém sabendo que assim não é, lho diz na cara. Mas eu deixo-o brilhar, ainda que lhe faça o reparo, se aceita tudo bem, se não aceita tudo bem na mesma, como foi este caso dos sapos.

- Mas é verdade, já o coveiro me tinha contado que os sapos largam os cordões…- Mas qual coveiro? - Interrompo-o.

- O Zeca aldrabão!

- Ah! – Exclamo, como me tivesse lembrado quem era o raio do coveiro.

- A alcunha dele já diz muita coisa. – Atiro com um sorriso, sem que o Diamantino sentisse o remoque.

- Por falar no Zeca aldrabão, veio-me agora a lembrança das pessoas que fazem questão de serem enterradas aqui ou ali ou então cremadas e as cinzas espalhadas em determinado local, eu no meu caso, já o disse aos meus filhos, que quero ser cremado.

- Ó Diamantino, não lhe mete impressão ser queimado?

- Não!

- Pois a mim, mete. Eu sei que é estúpido pensar assim, mas o que quer, ideia de sentir o fogo a destruir-me arrepia-me… é que posso não estar bem morto.

O riso do Diamantino fez com que os diversos clientes olhassem para nós e me deixassem um pouco incomodado com os sorrisos condescendentes, carregados de adjectivos contra a minha pessoa.

- Quer dizer, tem medo de ser queimado e não tem medo de abafar com toda aquela terra em cima?

O riso dos clientes doeram-me como uma pedrada, sem saber como sair da situação, disse no entanto.

- Não senhor! Peço que me metam um tubo para fora da cova para o caso de eu ainda estar vivo.

O riso agora era outro, passei de coitadinho a alguém com lógica.

- Está bem alembrado sim senhor. – Comenta o meu amigo com uma sonora gargalhada. – Isso pode resultar desde que, a sua mulher não lhe faça o que a Henriqueta Marreca, que Deus a tenha, fez.

- O que é que essa tal de Marreca fez?- Pergunto

- Ela não é do seu tempo, mas era uma varina das antigas, de pêlo na venta. Quando lhe morreu o segundo marido, fez no cemitério um tal chinfrim que parecia de gostava mesmo dele, sabendo no entanto a vizinhança que ela era bem má para ele. Principalmente quando chegava bêbado a casa. Contava-se que ela aproveitando-se do estado do pobre lhe dava cada tareia de criar bicho, e perante as nódoas negras dizia que ele tinha caído com a bebedeira.

Então a fita que fez no funeral despertou a atenção do ti’ Felício. Estavam a mandar as primeiras pazadas de terra quando desabou uma enorme chuvada que fez com que cada qual desanda-se dali o mais depressa possível. Só ficou a inconsolável viúva, o ti’ Felício e os coveiros. Estava a ficar noite e perante aquele diluvio, os coveiros disseram à viúva que no outro dia acabariam o trabalho.

Esperto e amigo de pregar uma partida o ti’ Felício de conluio com o coveiro, escondeu-se atrás de um cipreste junto á cova.

Passado um bocado, lá vinha ela com um ramo de flores para a campa do marido ainda por acabar. Nada do choro de ontem, só quando alguém passava por perto ela choramingava. O ti’ Felício não resistiu; Com uma voz cavernosa disse:

«Oh mulher! Tira-me daqui que eu estou vivo.»

A Marreca após o primeiro sobressalto, salta para cima da campa e põe-se saltos dizendo: «Qual vivo qual carapuça, tu estás é mal enterrado».

A gargalhada geral fez-me recordar porque é que eu sinto volta-e-meia saudades do café Niquinho.

Lorde
Enviado por Lorde em 03/02/2014
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