DICINHO– Imbróglios do Ofício (em homenagem a um grande Doutor em Linguística)

Dia cansativo aquele! Uma correria total! Mal se recompunha da consulta anterior, lá estava ele de novo, dando novas orientações para outro consulente, que na maioria das vezes não tinha paciência de ouvir suas explicações até o fim. Ele falava daqui, ratificava de lá, oferecia inúmeros detalhes, fazia adendos e... Opa! Nem um muito obrigado recebia, já se via falando sozinho novamente. Eram tantas as considerações que gentilmente fazia questão de oferecer, por que não prestavam mais atenção? “Por isso é que a comunicação está cada vez mais difícil! Depois colocam a culpa nos outros, nas pessoas e instituições, nunca na própria falta de interesse e acuidade” – pensava Dicinho, era como o chamavam os mais íntimos. Isso, quando não era preterido por outro colega de trabalho, mais encorpado, de porte mais avantajado, com ar prepotente e arrogante. “Bobinhos, a informação é a mesma, e se não tiveram paciência de ouvir-me, que dirá, ouvir aquele ali, só por causa do tamanho dele, o senhor Enciclopédia!” - resmungava chateado.

Ah, mas em meio a essas decepções, havia as compensações. Era extremamente gratificante ver o olhar brilhando de uma jovem, no auge dos seus vinte anos, calmamente saborear palavra por palavra, vírgula após vírgula, de todo o seu minudente relatório. O melhor era vê-la saindo satisfeita e grata pelos serviços prestados, prometendo aparecer mais vezes. Quase caía em tentação e se apaixonava, sim, porque a delicadeza de seu toque, seu suave movimento de mãos, era demonstração de uma pessoa bem educada e devidamente instruída, no trato com os outros, com os pertences alheios. Uma boa cidadã. E a maneira como ela segurava e folheava aquele caderno, fazendo suas anotações, quanto cuidado... Aqueles óculos... Cara de pessoa dedicada aos estudos – suspiros...

Mas deixa estar essa história de paixão, estava ali a trabalho e sua função não lhe dava tempo para esses devaneios. – “Próximo!” “Ah não! Esse não precisa mais de mim, já sabe tudo, veio aqui só para demonstrar sua sapiência, e travar discussões intermináveis comigo!” – Dicinho era genioso e não gostava de ser contrariado, também pudera, nascido em família de letrados e intelectuais, conhecedores de todos, ou quase todos, os axiomas da palavra. Fora ansiosamente aguardado no seio daquela família de estudiosos, amorosamente planejado o seu nascimento, e claro, devidamente preparado para enfrentar o mundo dialetal. Portanto, não admitia questionamentos e se os houvesse, haveriam de ser pertinentes e racionalmente lógicos, porque era expert no seu ofício, conhecia e sabia designar cada código e cada signo da sua área de trabalho.

Nunca se esquecera de um senhor, que vira e mexe, ralhava com ele, por causa das leis e da forma com que eram elaboradas; inclui-se aí, que ele odiava o fato de Dicinho seguirem-nas à risca e praticamente impô-las para os leigos. Mas a verdade é que, lá no fundo, o tal admirava-o.

Era um senhor muito inteligente, bem humorado, de muitos amigos, que certa vez entrou em questão com ele por causa da gramática, ou melhor, a forma com que ela prescrevia a língua. Muito embora a sua simpatia e carisma, Dicinho admitia que este senhor de certa maneira o irritava, ao confessar que o idioma que de fato lhe causava comoção, era o Francês. “Língua mesmo, é o Português! Onde já se viu um brasileiro com essas ideias!” – falava de si para consigo mesmo. Fora isso, até que não era má pessoa o Doutor Vlademir Yrigoyen, um dos melhores professores de Linguística, com quem Dicinho tivera o prazer de dialogar.

Dicinho era muito humilde, porém vale destacar a sua importância como prestador de serviços, especialmente no Brasil, nos diversos setores do ramo em que atuava, notoriamente o político; todavia, mesmo não sendo este, precipuamente, o terreno de sua movimentação, ou o motivo de sua atuação, ele é um dos membros garantidores do direito de cidadania, entre as nações desenvolvidas.

Elogios e rasgações de seda á parte, mais um dia chegou ao fim, hora do merecido descanso, para que no dia seguinte, mais pessoas pudessem ser beneficiadas por seus préstimos. Público de todas as idades recebia de Dicinho, diariamente, atenção e orientação devida.

Apagaram-se as luzes, e fecharam-se as cortinas para o grande ator da noite, ou melhor, de todo o dia e uma parte da noite.

Só em pensar que por falta de um agente social dessa relevância, os falantes de uma língua são relegados a uma classe secundária da humanidade, dá-nos uma vontade enorme de agradecer e reverenciar o Dicionário da Língua Portuguesa - Dicinho, para os íntimos ou PP, Português Padrão para os mais sofisticados.

Bons sonhos, amigo. Repouse suas folheadas páginas, e ocupe seu lugar de destaque, nas prateleiras e estandes de diversas livrarias e bibliotecas, entre os livros de maior sucesso no país, em número de vendas e quantidade de títulos publicados. Deixemos os imbróglios do ofício de lado, seu grande público o aguarda.

Cris Sozza
Enviado por Cris Sozza em 27/01/2014
Reeditado em 30/09/2016
Código do texto: T4667172
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