Vá ao centro da cidade a pé

Dizem que um velho apontava, colocando o dedo sobre o local que desejava indicar, todas as partes de seu corpo que doíam; o médico constatou que o paciente estava apenas com o dedo quebrado, que acusava dores quando em contato com as superfícies do corpo.

A velhice não traz apenas a hipocondria, nem doenças reais que incomodam o senil: traz o cachecol que você nunca usou, quando jovem; traz uma farmácia doméstica para sua cozinha;

Traz um jogo de dominós, como presente de aniversário, para você jogar na praça, aos domingos (todos os dias são domingos para os velhinhos); traz para você uma bengala, muito elegante, mas reveladora da idade; traz memórias de 40 anos atrás, que você desconhecia há 40 anos atrás; traz uma miopia que se estabiliza aos 70 anos, o que não pode ser contado como vantagem; traz um anúncio de GAGA, para sua testa, marketing gratuito, mas infeliz; .mas traz novos amigos, ou amigos velhos se você assim o preferir.

Esperando pelo ônibus circular, constrangido, buscando ocultar o Cartão de IDOSO, quando se aproximou um contemporâneo (como velho atrai velho) e deu início a um fatídico papo, que ilustra o Clube dos Carcomidos:

-Meu pai veio da Polônia (só quando idosos descobrimos o quanto é grande o número de imigrantes poloneses no Brasil), e lá, na Polônia, eu aprendi 3 idiomas, aprendi a tocar 3 instrumentos musicais e a ler Dostoievski.

Se dependesse apenas de mim o monólogo terminaria por ali, pois me causava nojo a forma com que ele coçava feridas em seu braço, com o dedo embebido em saliva; não sou poliglota e não me atraem outros idiomas, além de não tocar nenhum instrumento, mal assobio; ou seja, éramos completamente antagônicos. Não posso deixar de contar que ele contava, como um gabão, da aventura amorosa, que vivia no Brasil, com uma jovem 50 anos mais nova que ele. Nenhum pudor ao revelar que pagava todas as despesas do apartamento, que alugava para ela...tolinho.

Nem sempre um coletivo abarrotado de passageiros serve de alegria, ou de estímulo, a quem quer que seja, mas minha alma gritava ALELUIA, quando avistei a cavalaria chegando, ou melhor... o ônibus chegando.

Entrei no veículo coletivo pela porta de trás, enquanto meu imposto colega de viagem entrava pela frente, confesso que dei graças a Deus.

Temi que estava sendo vítima de um castigo, ou penitência, ou um horror de tortura medieval, quando ele, impunemente, sentou-se ao meu lado. Ainda coçava as feridas do braço com sua saliva, ainda tinha ancestrais poloneses, ainda dedilhava no banco do ônibus velhas canções, como se estivesse ao piano e ainda gozava dos prazeres de uma jovem amante brasileira, que vivia em um apartamento alugado por ele... e a tudo eu tinha que ouvir novamente

Eu realmente precisava ir até a cidade, mas desci do coletivo e voltei a pé para minha casa, em absoluto silêncio.

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 26/01/2014
Reeditado em 26/01/2014
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