ÀS "FERIDAS-PRÓLOGO" DO VIADUTO DO CHÁ

Em pleno aniversário dos quatocentos e sessenta anos da cidade de São Paulo, de súbito, as lembranças "dele", um personagem marcante dos meus passeios por São Paulo aos seis anos de idade, por ora me vêm intactas na presente crônica.

Cenário:

Idos de mil novecentos e sessenta e seis, num daqueles passeios em família pelo centro de São Paulo dos calmos tempos, andando pelas calçadas ladrilhadas do viaduto do chá sentido Mappin, talvez final de ano, onde o movimento urbano, embora acelerado, nem de longe predizeria o urbanismo surreal desenfreado das telas dos nossos dias atuais.

Meu pai, na nítida tentativa de me poupar emocionalmente, me puxava pela mão direita a me arrastar qual um ser empacado no susto e na indignação do que via, na sua comunicação paternal e gestual de "menina- não olha!- senão você vai se impressionar com a cena da calçada".

Porém, embora eu nada entendesse de impressões cerebrais, a primeira vez que eu o vi me bastou para impressionar minha memória e minhas letras...para todo o sempre.

Aliás ele sempre estava lá e lhes digo que ele nunca saiu dali.

Então, ele ficava ali sentado sobre a ponte que mostrava a vida correndo lá embaixo do viaduto cercado de grades, duma altura tão alta que eu mal a acessava, mesmo levantando os pés até a ponta dos dedões esticados; ele, um homem negro com um halo descolorido ao redor dos olhos e da boca, algo que me instigava, e que tinha à mostra sua perna direita doente, "enferidada" em crateras profundas, sangrantes, hoje sei, a evidenciar a intimidade das suas partes moles já degeneradas pela infecção pungente ,perene e corrosiva, talvez anestesiada pela dor que ninguém cura, nem o mais potente chá calmante que dava nome àquele viaduto, infecção que já enveredava até a estrutura óssea do seu membro inferior cronicamente doente, talvez o seu único meio de vida para angarair algumas moedas.

Tenho a memória auditiva dos zunidos de algumas moscas que o rodeavam na sua tragédia pessoal, ali tão cruamente exposta, e que poderia ser tema do palco do teatro Municipal, onde se encena todas as vidas, o elegante edifício situado logo mais à nossa frente, na calçada oposta.

Meu pai nunca soube, mas passear por ali para mim passou a ser um martírio oculto, porque eu sabia que irremediavelmente eu o veria na sua posição cativa do viaduto e mais uma vez aceleraria o meu coração, porque o imaginário da minha condição de criança me fazia gelar de medo frente ao nivel de dor nas feridas da perna que ele, com sua expresão facial, fazia doer em mim.

Quando somos crianças ainda não temos a habilidade de entender que não são só as dores físicas que nos doem...muito.

Ainda que sua dor imaginariamente doesse em mim, mesmo assim eu o fitava e o enfrentava com perplexidade corajosa nas diversas vezes que por ele passei, vezes suficientes para aqui descrevê-lo como um jovem rapaz negro que me parecia "velho" frente a minha primeira infância, mas que hoje sei que teria no máximo uns trinta anos de idade, de face sofrida, desanimada e malhada pelas mesmas manchas brancas disseminadas pelo seu corpo, engolidas pela feridas da sua perna, que hoje posso diagnosticar como vitiligo.

Tinha olhos semi-cerrados vítimas duma secreção palpebral algo amarelada e evidentes lábios carnudos e pálidos que emolduravam um sorriso parco toda vez que olhava para mim, oportunidade em que eu lhe deixava uma nota tirada do bolso do meu pai, cujo valor eu sequer saberia quantificá-lo no tempo.

Como alguém poderia ter tudo aquilo?-era o que me passava no pensamento de criança assustada.

Lembro que seu chapéu de palha, de cor creme encardido, lotava de gestos de misericórdia alheia, que hoje também aprendi que em nada mudam as situações das calçadas da vida...situações que demandam por verdadeiros milagres distantes de quaisquer mãos alheias que não sejam as do verdadeiro compromisso de base..os que talvez impeçam a concretização de tais destinos aviltantes à dignidade humana.

Utopia poética, hoje também sei disso...

Aniversário de Sampa e as feridas do viaduto do chá me vieram à memória de dor, tão vivas e dolorosas ao meu entendimento atual de criança adulta que posso lhes contar que, a cada um dentre a multidão atual dos mesmos seres perdidos que povoam as incontáveis calçadas da cidade, vez ou outra eu vejo o rosto daquele homem, que para mim, agora sei, era o prólogo duma triste história de abandono social que ali insidiosamente se iniciava pelo tempo a ser percorrido por Sampa.

Hoje são infinitos deles, "homens dos viadutos", espalhados pelas calçadas do tempo aviltadas pelo descaso.

Aonde estariam hoje aquelas minhas feridas do viaduto do chá?

Qual foi o seu destino?

E quantas outras dolorosas feridas ainda se abrirão entre nós sem chance de felizes epílogos?

Nota da autora:

Em homenagem ao rapaz do viaduto- do- chá, o da minha infância.