O abraço
Eu aqui nesse abraço, procurando falar das coisas do mundo. E ela ali, bem do outro lado, aproveitando-se desse hedonismo particular. Justo aqui encontro-me sozinho, isolado, sem laço algum que me faça crer. Amassando seu corpo contra o meu, tento ver vias, caminhos e luzes - ainda que frágeis para minha escuridão - mas nada encontro. Na verdade, todos nós esperamos encontrar, a diferença está no velho modo de fazer. A alternativa de perder-se nos meios ou prender-se aos fins. Os primeiros arrogam-se do poder das incertezas, os últimos crêem sem o consenso alheio.
Continuo ausente nesse abraço caloroso, cumprindo aquilo que nossos corpos almejam. Ela, no entanto, acredita neles, na força criativa dos corpos, na infinitude da carne, como se nossos corpos animalescos pudessem mesmo dizer coisas, independente das cabeças, alijando os debates morais e as virtudes. Se não podemos fazer-nos pelo mundo tangível, que deplora o nosso singelo momento, passamos a acreditar que este papel será realizado pelo nosso animalesco corpo. Como se ele, sempre despolitizado, sujo e arrogante, pudesse agora servi-nos ao discurso, ao amor, ou qualquer coisa degenerada que o valha. Estranho dar-lhe esse papel tão pouco carnal, doando-lhe plenos poderes, ainda que se possa desconfiar da sua incapacidade de dissimular qualquer encanto.
O que é um abraço, afinal? Onde está o abraço? Não me venha com lirismos baratos, nem dissimulações retóricas que reconhecem a nossa fria e frágil condição. Isso, traga aquilo de mais verdadeiro, o que há de mais impuro e sórdido, defenda de uma vez, com ares de graça, a insolubilidade de um abraço. Todos merecem tê-lo, não é mesmo? A qualquer hora você pode dá-lo, não é verdade? Ninguém cobra nada, não é? Curioso é que venham usar minhas questões para demonstrar como eu sou insensível, como eu desejo negar abraços por aí, como eu não gosto do compartilhamento e como sou fascinado pelo valor de troca. De fato, a repulsa às minhas questões são o espelho que tenho para mostrar-lhes o ventre carnal, que nesse momento se volta contra o meu próprio ventre, num abraço que parece não ter fim.
Seria eu o ingrato? O frio? O impostor que discursa e reflete em pleno abraço? Só se pode dar valor a um abraço quando não o temos. A sua falta que lhe abre, que lhe apresenta como futuro latente. E eis uma palavra proibida: o futuro. Eis o laço indubitável do abraço, eis o valor por hora convertido em retalho profano. O motivo da discórdia, o local do desencontro, nada mais que o presente e o futuro. Eu, desacreditado no presente de um mundo sem futuro. Ela, crente num presente demente que se repete como carne contra carne, animal contra animal, destruição pela destruição. Nós? O que somos? Abraço? O complemento intangível, a proximidade forjada pelo imperativo da vida, o encontro de desesperos reinantes e, diametralmente, opostos.
Depois do abraço nos olhamos, com a ternura de sempre, como se houvesse alguém dentro de nós que pedisse desculpa pela nossa miséria, pela nossa incapacidade e, assim, rogasse perdão a nossa falência. Ela saciada ou não, sai para repetir o feito, para reproduzir o presente, para ir e voltar, dando voltas no mesmo lugar. Eu permaneço fixo, desacreditado, revoltado e suscetível a um novo abraço.