Silêncio

Silêncio

“É preciso extrair silêncio das coisas.

Quando uma coisa produz silêncio

Ela está pronta.” (Mariana Botelho)

Havia neles um barulho surdo que os unia e repelia-os com a mesma frequência. Cada vez com que se olhavam repetia-se a cena de dois espelhos postos um diante do outro. Ele admirava sua inteligência, o jeito como descobria todas as suas artimanhas, e até o modo como ela fazia pequenas descobertas, que o deixava desconcertado.

Ela ficava olhando seu esforço de adultecer, usando aquelas roupagens formais, aquela gravidade que punha no mundo e se achando a peça que faltava para mudar tudo.

Naquela hora, perto da hora do angelus, no quase ido e o porvir do dia, sentaram-se os dois sem nenhuma pretensão, sem nenhum assunto profundo, nenhuma decisão sobre o mundo. Ele dizia sobre a Amelie Poulain, suas manias, o cotidiano do seu fabuloso destino e como tentava imitá-la com outras manias: visitando as livrarias da cidade, procurando livros de títulos ruins – que ele nunca compraria – e tentando achar algo ‘que prestasse’. - E até que tem, sabe, informava com ar de contentamento infantil.

Ela se empolgava com as aventuras policiais que via na TV, indignada com as descobertas do último capítulo. Contava, de punho fechado balançando para todos os lados, que não suportava traição, e ele assentia, balançando com a cabeça e sorrindo. Quando sorria, ele dizia todas as verdades que não atrevia apresentar em palavras. O ar de insinuação levava os dois a se verem na mesma velhice, contando o passado e vendo o futuro nos netos, vendo-os repetir as mesmas insignificâncias da juventude que tiveram.

Ele era capaz de ver o que a vida os daria dali em diante, sem se preocupar com a inflação, com a possível terceira guerra mundial, que era iminente ‘por causa de tanta intransigência desse mundo’, como dizia sempre.

O olhar dos dois era saudoso pelo que ainda viria; era cúmplice e silencioso como se tivessem descoberto petróleo em terras próprias; com ele percorriam a intimidade um do outro tanto que o ato da criação não parecia ser mais que aquilo. Já quando tinham de ir, - sempre tinham de ir- apressavam-se naquele abraço, cujos breves segundos levavam-nos a um mesmo e profundo abismo e enquanto ele durava, permanecia aquele frio na barriga, os dois caindo, sem controle, só os dois, entre pedras, terra, folhas, ora suas mãos se tocavam, oram se permitiam, contendo naquele instante uma vida inteira que se repetia toda vez que se despediam. Enfim, desconcertados, colocando no lugar o corpo e a alma desajeitados por aquela queda, simplificavam: - A gente se vê. – Sim.

(03/07/2013)