A vida, uma grande brincadeira?

Não sei por que flagrei-me esta manhã a me lembrar de algumas brincadeiras da minha infância, mais especificamente da época final dela, a da pré-adolescência. Tinha no bairro em que morava um grupo de amigos com os quais geralmente passava as horas ociosas brincando. Lembrei-me especialmente de duas brincadeiras que demandavam certa espécie de ação mais ousada, típica das atividades masculinas infantis.

Uma delas, mais comportada nesse sentido, chamava-se, salvo engano, "mãe da rua”. Não sei se os homens que têm minha idade lembram-se dela. Tratava-se do seguinte. Na rua, inicialmente, todos se posicionavam na calçada no espaço delimitado pela sua guia. Após um sinal de partida, todos procuravam empurrar todos para fora da calçada em direção á rua. Os que caíam para o lado da rua, não conseguindo manter-se na calçada, ficavam fora do jogo e limitavam-se daí a assistir ao jogo entre os que permaneciam nele, eventualmente torcendo pelos amigos mais próximos. Tratava-se na verdade de uma espécie de luta coletiva de sumô, aquele esporte japonês em que dois oponentes corpulentos se atracam com o objetivo principal de jogar o outro para fora dos limites do pequeno ringue circular. Era uma algazarra só, todos riam e se divertiam para valer, todos empurrando todos para fora da calçada, às vezes pequenos grupos se unindo para empurrar os demais e, naturalmente, os que ficavam solitários acabando por sair primeiro. Ao final, quando sobrava o grupo vencedor, seus componentes passavam agora a se digladiar entre eles próprios, para que ao final sobrasse um único vencedor final. Naturalmente os mais corpulentos eram os que tinham mais chances, mas era comum também que os mais hábeis em desviar-se deles pudessem sair-se bem e também que os pequenos traçassem estratégias de ação solidária para vencê-los. Lembro-me de que eu, embora fisicamente um dos menores, era um dos que conseguiam ficar mais tempo, numa escala intermediária entre os que saíam primeiro e os que ficavam por último, mas nunca venci. Mas isso de vencer absolutamente não tinha muita importância. O mais importante na brincadeira é que todos, independente de terem saído logo do jogo ou não, se divertiam mesmo para valer.

A outra brincadeira de que me lembrei não devia ser muito comum entre outros grupos de crianças, visto que dependia de condições ambientais mais especificas do que uma simples calçada, mas tinha um potencial de perigo real que não havia na anterior. No enorme quintal de um dos amigos, situado no quarteirão onde vivia, havia um grande espaço com várias árvores frondosas e antigas, como mangueiras e outras espécies, muito próximas umas das outras. A brincadeira ousada e perigosa, da qual eu não participava como protagonista, não tinha o objetivo de chegar a um vencedor, mas a de testar a habilidade e a coragem dos que se dispunham a embarcar nela. Como as árvores ficavam muito próximas umas das outras, a brincadeira consistia em saltar do galho de uma árvore a outro galho de outra árvore vizinha, a uma altura considerável do chão. A ideia era mais ou menos mostrar a mesma habilidade dos trapezistas de circo que fazem saltos espetaculares no ar entre os trapézios. Mas havia na brincadeira uma desvantagem considerável em relação aos trapezistas, a de não haver redes de proteção. Assim, o desafio ao perigo era real, um verdadeiro teste de coragem. Lembro-me de que uma vez, fato a que não assisti, um dos amigos caiu da enorme altura e a coisa repercutiu entre os demais como uma verdadeira tragédia, que creio ter desencorajado a muitos de continuarem a testar sua coragem na brincadeira. O acidente rendeu ao ousado amigo um braço quebrado. Mas, longe de constituir uma amostra de seu fracasso, o braço imobilizado por uma tipoia com uma camada de gesso passou a ser exibido como um atestado da sua valentia e coragem.

Estas brincadeiras devem permanecer nas memórias de todas aquelas crianças que delas participaram, talvez não refletindo o mesmo retrato, mas de acordo com a impressão subjetiva que cada qual teve dependendo da forma como com elas interagiram. Nas brumas da memória, elas são evocadas como lembranças boas de fatos que ocorreram e que não vão se repetir. Lembranças de brincadeiras que trouxeram emoções diversas, a alegria da amizade, o prazer das conquistas, a expectativa da aventura. Eram brincadeiras sadias, descompromissadas, cheias de vida, de humor, de emoções, de prazer e de alegria incontidos. Sem neuroses e seriedade, sem reflexões mais apuradas sobre sua conveniência moral. Ao final, mostravam apenas a vida em sua expressão mais pura. A não ser por um ou outro braço quebrado, não tinham consequências mais sérias.

Ficaram agora para trás como vagas lembranças felizes que não vão se repetir. Todos os que delas participaram, de forma mais ou menos intensa de acordo com suas personalidades díspares, viveram de fato suas emoções particulares e não têm do que se queixar.

Fico agora a pensar se a vida de cada um de nós, vivendo-a de acordo com as nossas personalidades tão diversas, não é de fato uma grande brincadeira de que participamos e que um dia, como qualquer brincadeira infantil do passado, não vai ser lembrada apenas como um sonho distante que se foi, cuja aparência de seriedade não lhe dará a prerrogativa de uma qualidade ontológica mais real do que as daquelas inocentes brincadeiras de que participávamos.

Se assim for, por que levarmos a vida tão a sério?

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 23/01/2014
Reeditado em 23/02/2022
Código do texto: T4661805
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